Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A promiscuidade no jornalismo político

Certa vez estive envolvido numa discussão interna do Sindicato de Jornalistas do Rio sobre uma coluna iniciada por Pelé no Jornal do Brasil. Discordei da idéia de impedi-lo de escrever a pretexto de não ser jornalista. Mas o próprio craque, interpelado pelo sindicato, acabaria por recuar: concordou em expor suas análises sempre na forma de entrevistas, cabendo o texto a um jornalista.

Mais tarde ouvi dizer que Tostão, formado em Medicina, fez curso de comunicação para não ter de enfrentar a ira de jornalistas inconformados com a competição de não diplomados em comunicação. A disputa permanece, mas minha opinião continua a mesma. Não acho certo insistir em restrições assim para impedir um Pelé, um Tostão, um Gerson, um Sócrates e tantos outros de escrever sobre o que conhecem tão bem.

O jornalismo ganha com eles. Se esse caso e outros semelhantes violam a lei que regulamenta a profissão, os colegas jornalistas e os professores de comunicação que me desculpem, é hora de mudar a lei. Mas há certas sutilezas a serem examinadas. Volto à questão por causa do que acontece nos EUA, onde Karl Rove, marqueteiro tido como ‘o cérebro de Bush’, tornou-se a mais nova estrela do jornalismo político americano.

Rove, Russert, Stephanopoulos

Nos EUA existem escolas de jornalismo e de comunicação, mas não a exigência de diploma para o exercício da profissão. Um dos jornalistas mais bem-sucedidos da TV – Mike Wallace, do 60 Minutes da CBS – celebrizou-se primeiro como animador de programas de prêmios. Tim Russert, que faz sucesso no Meet the Press da NBC, começou como assessor do governador Mario Cuomo e, depois, do senador Daniel Moynihan.

O programa político da ABC, que hoje disputa o horário de domingo com Russert na NBC, é This Week, de George Stephanopoulos, formado em Ciências Políticas, Direito e Teologia – mas até então sem nenhuma experiência jornalística. Ele só se tornou conhecido em 1992, como secretário de imprensa da campanha presidencial de Bill Clinton e, posteriormente, diretor de comunicações da Casa Branca.

Na mesma campanha presidencial, destacaram-se ainda James Carville, principal estrategista de Clinton e, do outro lado, Mary Matalin, a serviço da campanha rival de George Bush I, o pai. Carville e Matalin (ela passou a servir, em 2001, ao vice-presidente Dick Cheney) casaram-se depois e ganham a vida desde então com política e jornalismo. Fazem na TV (inclusive na NBC) um número tipo vaudeville: brigam no palco, expondo as posições democrata e republicana. Pura encenação teatral, claro.

Obama, o próximo alvo dos ‘527’

Desde segunda-feira (12/5) o New York Times – que dias antes devassara o escândalo dos ‘analistas militares’ da TV, generais treinados pelo Pentágono para melhor defender na mídia as opções bélicas dos EUA – expôs a situação atual de Karl Rove, transformado em analista político da mídia após dirigir com sucesso as duas campanhas de Bush (2000 e 2004) [ver aqui]. Ele fala às câmeras da Fox News e escreve para o Wall Street Journal e a Newsweek (saiba mais AQUI sobre esse novo papel dele).

Convenhamos que enquanto o debate é sobre Pelé, Tostão, Sócrates, está fora de dúvida que o jornalismo – como os leitores ou telespectadores – só tende a ganhar. Mas uma relação promíscua mídia-política corre o risco de comprometer a própria integridade do jornalismo. E Rove, especialista em truques sujos da política, traz ainda seu status de celebridade e muitas dúvidas éticas.

Sobre a competência do personagem, nada tenho a opor. Dificilmente alguém domine tão bem o tema que analisa – como na certa concordam os que acompanharam sua participação na cobertura das últimas primárias pela Fox News. Mas, entre outras coisas, Rove pode estar envolvido, segundo sugeriu o Times, num projeto para produzir e veicular comerciais difamatórios contra Barack Obama.

Esses comerciais viriam do que é chamado nos EUA ‘grupos 527’. O número refere-se a dispositivo de legislação fiscal. Eles são organizações desregulamentadas, livres de impostos e sem ligação visível com a campanha de qualquer candidato. Exemplos expressivos ocorreram nas duas campanhas de Bush II, o filho, ambas dirigidas por Rove. Em 2004 a difamação de John Kerry em forma de comerciais inundou o país, iniciativa do ‘Swift Boat Veterans for Truth’, um grupo 527 [ver aqui].

A mesma porta de vaivém

Coube ao mestre de Rove, Lee Atwater, fazer a campanha de Bush pai em 1988 e usar um comercial semelhante – sobre Willie Horton, presidiário negro que, liberado para passar um fim de semana em casa, estuprou e matou uma mulher branca em Massachusetts, estado governado por Mike Dukakis. O anúncio foi produzido por um grupo sem vínculo com a campanha. Sabe-se hoje que, ante a vantagem (quase 20 pontos percentuais) do democrata Dukakis, Bush autorizou a veiculação dos comerciais – e se elegeu.

Depois de Atwater prever que ao fim da campanha Horton seria célebre em todo o país, um ex-assessor de mídia de Ronald Reagan – Roger Ailes, hoje presidente da Fox News, que acaba de contratar Rove – completou: ‘A única dúvida é se vamos mostrá-lo com a faca na mão ou sem ela’. E Larry McCarthy, que produzira o comercial e antes tinha trabalhado para Ailes, encarregou-se de convencer as TVs a aceitá-lo [ver aqui a carta de um leitor do Washington Post convencido de que em 2008 o ex-pastor de Obama, Jeremiah Wright, será transformado num Willie Horton].

As relações promíscuas de gente como Rove com a mídia são e serão sempre uma preocupação para quem se preocupa com a ética e a integridade jornalística. Rove foi da Casa Branca para a redação – como Ailes, Stephanopoulos, Carville, Matalin e outros. Mas às vezes o fluxo é inverso na porta de vaivém: Tony Snow, depois de ser âncora do principal programa político da Fox, tornou-se porta-voz de Bush na Casa Branca.

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Jornalista