A imprensa parece tão perplexa quanto os políticos, no dia seguinte à maior onda de manifestações por todo o país, na série de protestos que se iniciou em São Paulo por causa do aumento nas tarifas de transporte público.
Velhos militantes que fizeram suas carreiras em passeatas, atravessando a luta contra a ditadura, o movimento de liberação sexual e a cultura das drogas, desfilam seu espanto com a aparente falta de objetividade das reivindicações. Ex-esquerdistas convertidos à socialdemocracia liberal ficam atônitos com a ausência de uma doutrina na raiz da rebelião. Cientistas sociais adeptos da ficção chamada pós-modernidade criam neologismos para convencer a si mesmos.
Curiosamente, a melhor análise sobre o que se pode perceber do fenômeno é feita por dois repórteres do Estado de S.Paulo, em um texto curto, despretensioso e sem os cacoetes dos teóricos das ciências humanas (ver “Antiliberal e crítico do marxismo, MPL usa multidão como arma”). Eles simplesmente entrevistaram os líderes do movimento, fizeram uma radiografia de suas principais leituras e desmontam com objetividade os mais exuberantes artigos e os mais peremptórios editoriais do próprio jornal onde trabalham.
Trata-se de um fato raro na imprensa tradicional do Brasil, que se caracteriza pela homogeneidade conservadora e a submissão do corpo jornalístico “puro e duro” ao núcleo de opinião do jornal.
Uma das conclusões é que os jovens líderes das manifestações têm uma visão de mundo à esquerda do espectro político, “entre os adversários do liberalismo econômico e os críticos do marxismo histórico”. São, no dizer dos dois repórteres, um fruto do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, que se realizou em 2005. Não custa lembrar que a imprensa sempre desprezou o Fórum, quando não se dedicou a atacar suas propostas por meio de seus articulistas mais reacionários.
Se há uma síntese para o complexo de influências que identificam o movimento, ela está presente na seguinte frase: “Eles pensam que um outro mundo é possível”.
Embora os autores da análise se refiram ao fato de os jovens serem “nascidos na sociedade pós-moderna” – como se “pós-modernidade”, expressão derivada do conceito genérico de “fim da História”, fosse um recorte concreto e visível no tempo –, note-se que eles deixaram de lado o arcabouço ideológico do jornal onde prestam seus serviços para tentar compreender o objeto de sua observação.
Movidos por uma utopia
Essa é a diferença básica, de que se fala eventualmente neste espaço, entre interpretar um acontecimento e compreendê-lo. A prática generalizada na imprensa tradicional é aplicar a qualquer fato as lentes conservadoras manipuladas na direção de Redação e tentar, com essa interpretação viciada, influenciar a opinião do público.
No caso, o esforço mais evidente dos jornais é jogar o ônus da crise no colo do governo federal e criar um estado de beligerância entre o partido no poder nacional e uma parcela dos manifestantes.
A tática é simples, como sempre: desloca-se para o alto das páginas aquilo que representa o viés de interesse da mídia e elimina-se ou desloca-se para o rodapé e as notas curtas aquilo que não pode deixar de ser noticiado, mas não interessa à orientação editorial.
Essa característica do noticiário e do opiniário é que dá mais relevância ao texto curto dos dois repórteres do Estado: em poucas palavras, por exemplo, fica-se sabendo que a violência usada por alguns grupos de manifestantes não é simplesmente ação de vândalos desarticulados, delinquentes oportunistas ou drogados – é parte da estratégia de uma facção que faz parte do movimento, e que se informa em teóricos de um anarquismo que se desenvolve nos escombros da sociedade liberal.
Há bandidos em meio às multidões, e seu número varia de cidade para cidade, mas pelo menos em São Paulo, até o vandalismo é politizado, fundamentado em leitura consistente e, segundo a conclusão do artigo, “expôs o despreparo da PM e dos governantes e acabou sendo decisivo na vitória das manifestações”.
Resta saber a quem vai servir, afinal, essa violência.
Algumas expressões compõem um interessante mosaico de ideias que permitem um exercício de compreensão do movimento. Por exemplo, a ideia de que tudo é movido por uma utopia – o desejo de uma sociedade melhor – que tenta se realizar por meio da desobediência civil a instituições que já não representam os interesses da maioria.
Os manifestantes não se opõem a um governo específico, a um partido ou a uma política econômica: eles propõem um retorno aos fundamentos da democracia.
Enquanto a imprensa, massivamente, tenta demonizar tudo que parece ameaçador ao status quo, a curta e interessante análise de dois repórteres que ainda frequentam as ruas indica que o que estamos testemunhando é a revolta do senso comum.