Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A utopia da neutralidade

O Globo de quinta-feira (4/10) dá continuidade ao debate sobre a existência de material didático com cunho partidário nos livros comprados pelo MEC para distribuição nas escolas públicas.

Segundo o artigo do jornalista Ali Kamel de terça-feira (2/10), o livro estaria repleto de propaganda político-partidária, com fortes inclinações petistas. O que, evidentemente, é proibido pelo MEC.

Vejo, aqui, dois importantes aspectos que independem da questão pontual de se houve, ou não, interferência partidária na escolha do livro.

Em primeiro lugar, há uma questão filosófica envolvida. Existe informação neutra? Alguém faz relatos históricos com isenção ideológica? Se as próprias ciências exatas já há muito abdicaram da mitológica neutralidade científica, alguém ainda crê que haveria neutralidade em ciências sociais? É desejável que haja?

Aprendizagem e cognição

A questão central não é a existência de tendências ideológicas, pois estas me parecem óbvias. A questão é como estas ‘cores ideológicas’ são postas no texto didático. O autor de uma obra – e o livro didático não tem por que fugir à regra – tem pleno direito, democraticamente constituído, de expor suas idéias e seus valores. O que não deve, e isto, infelizmente, é uma prática corriqueira – não apenas em livros, mas em revistas, jornais, programas televisivos e quaisquer outras mídias de informação –, é transmitir seus valores como se estes fossem não suas idéias, mas verdades absolutas. Quando isto ocorre, a liberdade de pensamento e expressão se transforma em fraude e manipulação.

Um segundo aspecto se refere ao que precisa efetivamente ser transmitido ao aluno do ensino fundamental. Qual a necessidade prática deste aluno ser exposto a um material acadêmico com aprofundamento político que muitas vezes alunos de nível superior não têm? Nada contra um ensino com aprofundamento cultural; o problema é que este é posto em detrimento da compreensão da atualidade histórica em que vive.

Deve haver um elo entre a teoria e sua aplicabilidade prática, de modo a que possibilite uma interação entre o saber e seu uso – não específico e técnico, mas voltado para todos. Esta é a diferença entre o antigo conceito de aprendizagem como fruto de um condicionamento e o conceito de cognição, como sinônimo de compreensão dos processos. No campo acadêmico, a distinção entre estes conceitos é extremamente importante, visto que é da concepção de aprendizagem que o professor tiver que serão mensurados os resultados obtidos.

Cidadania e patriotismo

Assim, um professor que considerar que aprendizagem é a mera devolução passiva de uma informação transmitida poderá facilmente incorrer no erro de avaliar como ótimo um aluno que apenas repete textos sem uma avaliação crítica pessoal e, principalmente, sem o devido domínio sobre o processo. Se for considerada a antiga concepção de aprendizagem, se o aluno não decorar a informação, nenhum valor lhe será creditado.

Para finalizar, é importante frisar que não é objetivo da escola fundamental a formação de cientistas. Seu objetivo é formar brasileiros com noções de cidadania e patriotismo. Se fizer isto, está ótimo.

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Mestre em Psicologia pela FGV e diretor de Pós-graduação stricto sensu da Universidade Estácio de Sá