Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A violência nascida das ruas

O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (11/3) pela TV Brasil, o primeiro programa da temporada de 2014, trouxe de volta à pauta um assunto discutido em diversas edições de 2013: a violência nos protestos de rua e o papel da mídia diante da clara tensão entre manifestantes e forças de segurança pública. A violência como recurso para chamar a atenção nos protestos voltou às páginas dos jornais em fevereiro, quando o cinegrafista Santiago Andrade, da Rede Bandeirantes, foi morto por um rojão atirado durante um ato contra o aumento das passagens no Rio de Janeiro.

Para discutir este assunto, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro a filósofa Viviane Mosé e o professor emérito de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), jornalista e escritor Muniz Sodré. Viviane é doutora em Filosofia pela UFRJ, especialista em Elaboração de Políticas Públicas, comentarista da rádio CBN e escritora. Muniz Sodré é colunista do Observatório da Imprensa online, foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional e publicou mais de 30 livros sobre Comunicação. Em São Paulo, o programa contou com a participação do jornalista Bruno Torturra, fundador do Mídia Ninja e do Pós-TV e ex-diretor de Redação da revista Trip.

Em editorial, Dines propôs que a mídia assuma o papel de negociadora de conflitos: “As manchetes de toda a imprensa são testemunhas da situação: quanto mais nos aproximamos da Copa do Mundo, mais aumentam as tensões. O mutirão e a empolgação que se esperavam deram lugar a um preocupante cronograma de conflitos. O que está errado não pode ser ignorado, malfeitorias precisam ser identificadas e punidas. Mas a truculência precisa ser abortada. A primeira providência consiste em evitar que o debate sobre a violência seja contaminado pela própria violência” (ver íntegra abaixo).

O que querem os manifestantes?

No debate ao vivo, Viviane Mosé admitiu que a sua opinião é controversa. A filósofa ressaltou que o mundo passa por um período de profundas mudanças nas mídias e hoje é possível conversar por meio de um clique. Esse novo paradigma permite o rápido encontro de pessoas, inclusive das que têm uma indignação justa com a qualidade do serviço público. O inconformismo ganhou força nas redes sociais e a população foi para as ruas de forma desordenada. Viviane lembrou que os manifestantes, desde o princípio, usaram recursos como queimar lixo, incendiar carros e confrontar a polícia.

“Quando as pessoas vão para a rua movidas pela indignação justa, mas sem nenhum conceito, sem nenhuma direção, dizendo ‘vem você também’, elas estão chamando todo o mundo para a rua? Estão chamando os neonazistas, os fascistas, os antissemitas, os pedófilos, os bandidos, os violentos, os traficantes?”, questionou a filósofa. Viviane disse que os protestos não têm propostas e nem um alvo específico. Para ela, as reportagens tratando dos protestos que reuniram milhares de pessoas não tinham profundidade e não questionavam o comportamento dos manifestantes. As consequências das manifestações poderiam ter sido ainda mais graves, com pisoteamentos e até um maior número de mortes. A mídia também não mostrava, de acordo com a Viviane, a atitude provocadora dos manifestantes em relação à polícia.

Viviane Mosé ponderou que a vida é, naturalmente, violenta, mas é preciso criar limites para conter os impulsos dos indivíduos. A violência é especialmente perigosa em grupo, como em casos de linchamento. “Se as pessoas vão para as ruas, têm que ter limite, distribuição, têm que saber o que estão querendo. Não [se] pode colocar todo o mundo na rua dessa maneira, à toa. Não pode. Isso é uma coisa básica de sociedade: o nome disso é lei e limite.”

Na opinião da filósofa, pedir melhorias na Saúde e na Educação de forma genérica não é ter uma pauta de mudanças concretas. É preciso antes ter uma noção dos problemas e do funcionamento dos setores em questão. Não basta apenas levantar uma faixa em um protesto: “Se você quer mudar o Brasil dá um pouco mais de trabalho. Tem um processo e investimento humano, o que não acontece, especialmente nas redes”. De acordo com a filósofa, a internet, ao invés de contribuir para o debate democrático, livre de afetos e cumplicidades silenciosas, tem proporcionado atuações maniqueístas e manipuladoras. Viviane Mosé sugeriu que a universidade e a imprensa se coloquem como espaços para reflexão. “Temos que reaprender a fazer política. E isso, na sociedade do conhecimento, não é quebrar, é pensar de uma forma ampla, complexa e corajosa”, propôs a filósofa.

Mais palavras, menos pancadas

Muniz Sodré relembrou a primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos trata da liberdade de expressão justamente porque seus fundadores tinham em mente que a democracia é sempre um espaço de tensões e explosões. Para eles, a liberdade de opiniões deveria ser mediadora dessas tensões. “Com a comunicação eletrônica e com a internet, nós não estamos mais em uma democracia de opiniões. A democracia hoje talvez seja uma democracia de emoções. Ninguém está muito interessado na argumentação, na reflexão e nem nas opiniões, mas na manifestação de seus afetos e emoções”, disse Sodré. Quando as palavras faltam, a violência aparece como uma contralinguagem ambígua e perigosa.

O professor ponderou que, uma vez desencadeada, a violência, não “comporta a ideia do acidente”. Por outro lado, ela tem um “caráter fundacional”, por isso é compreensível que ocorra: “Não há nada socialmente que façamos sem uma certa agressividade. A criança aprende a andar agressivamente, bate na outra”. Sodré chamou a atenção para o fato de que os atos de vandalismo ocorridos nas manifestações têm, em geral, uma comportamento infantil.

Na opinião de Muniz Sodré, as ruas sempre foram um espaço alternativo interessante no Brasil, desde a ditadura. Mas durante o regime de exceção havia uma finalidade nas manifestações. Hoje, há dúvidas sobre o teor das pautas apresentadas nas ruas e o objetivo dos protestos. “Eu gostaria de ver manifestantes nas ruas para alguma coisa”, afirmou o professor. Para ele, é preciso que se crie um outro espaço que não seja o da democracia representativa, que já está combalida, para essas discussões. As pautas que geram a indignação das massas, de acordo com a percepção de Sodré, deveriam ter um lugar próprio para um encaminhamento institucionalizado. “Por que não as universidades? O Estado banca as universidades públicas sem um fórum capaz de repercutir questões nacionais e questões urbanas importantes. A universidade está afastada disso”, lamentou Muniz Sodré.

Ao invés de o jornalismo seguir um modelo no qual alguém reporta uma notícia e o público aceita, poderia ser uma “conversa social”, na opinião de Sodré. Assim, temas importantes viriam para o debate público. As redes sociais, na sua opinião, ainda não estão aptas para este tipo de debate porque disseminam a polarização do pensamento. “Essa reflexão é universitária, é política e não é certamente da política velha, tradicional, porque a política representativa, dos partidos, do parlamento, não tem mais nada a dizer”, analisou Sodré. Por outro lado, a “política das emoções” que tem sido vista nas ruas pode se tornar violenta e precisa de limites.

O professor contou que na época em que os primeiros protestos de maior adesão foram organizados, em junho de 2013, ele estava fora do Brasil. Ao chegar ao país, procurou entender qual era a finalidade dos protestos: “Eu lembrei de um poema de Ascenso Ferreira [sobre o gaúcho] que diz: ‘Riscando os cavalos!/ Tinindo as esporas!/ Través das coxilhas!/ Saí de meus pagos em louca arrancada!/ – Para quê?/ – Para nada!’ Eu gostaria de ver um ‘para alguma coisa’ nas manifestações”, afirmou o professor.

A violência do Estado

Dines perguntou a Bruno Torturra qual tem sido a atuação do Mídia Ninja nos últimos meses. O jornalista explicou que o coletivo continua transmitindo ao vivo, mas agora, além das ruas, cobre os gabinetes. Alguns exemplos de trabalhos recentes são o debate do Marco Civil da Internet e a greve dos garis no Rio de Janeiro. O jornalista discorda de que as consequências dos tumultos nos protestos poderiam ter sido mais graves por conta dos manifestantes: “Eu estou na rua desde o começo e havia muita consciência política, havia uma causa muito clara e havia uma disciplina muito grande na maioria esmagadora das pessoas que [ali] estavam”. Para ele, a mídia condenou as manifestações até 13 de junho de 2013, quando a polícia de São Paulo atacou brutalmente pessoas que participavam do movimento.

O representante do Mídia Ninja ponderou que é contra a violência nos protesto e que os implicados na morte do cinegrafista Santiago Andrade têm que ser punidos. Mas a morte acidental de Santiago não pode ser comparada à violência institucionalizada do Estado, como ocorreu durante a ditadura militar e como acontece hoje, quando a polícia atua nos protestos. A ação das forças de segurança poderia ter matado mais pessoas nas ruas do que o vandalismo dos manifestantes: “Uma coisa é um jovem irresponsável, avulso, atirando algo em um policial, quebrando vidros. Outra coisa é a força do Estado agindo em nosso nome, dando tiro, jogando bomba em pessoas indefesas que estão, de maneira responsável ou às vezes irresponsável, exercendo o direito de livre manifestação”, disse o jornalista. Para Torturra, a polícia “põe o sangue nas mãos da sociedade” quando age de forma violenta em nome dela.

Alvo de parte da indignação dos que foram às ruas, a mídia se tornou protagonista do processo. Para Bruno Torturra, isso impede que os meios de comunicação consigam cobrir os movimentos de forma imparcial. Torturra acredita que as grandes massas agem mais pautadas pela emoção do que pela racionalidade, o que impede uma reflexão mais profunda: “Eu vejo também, em muitos grupos, um novo pensamento emergindo da capacidade de a gente se informar sem tanta mediação. O que antes era uma exclusividade de quem estava na faculdade ou tinha acesso a livros, assinatura de jornais, hoje todos podem ter acesso. A gente está na infância desse processo. Eu tenho que ser otimista de que [vamos] sofisticar o nosso pensamento, senão em massa, mas pelo menos em número suficiente para que a reflexão se torne um pouco mais complexa”.

Torturra acredita que os protestos têm um objetivo definido: “Eu vejo que há uma falta de foco muitas vezes, mas eu acho que outras vezes é miopia de quem está olhando de fora. Estão acontecendo muitas manifestações com pautas específicas. Essa manifestação que tragicamente acabou na morte do cinegrafista da Band era contra o aumento das passagens no Rio. A gente acabou de ver uma greve histórica dos garis que foi conquistada com uma pauta específica”. Para ele, é preciso compreender que as manifestações têm um novo formato. Não existe uma liderança clara, nem um movimento social clássico arregimentando, sequer um manifesto único.

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A mídia nas manifestações

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 715, exibido em 11/3/2014

Abrimos a temporada de 2014 num ambiente mundial supercarregado. Nossa Ucrânia e nossa Venezuela são menos violentas, mas a batalha das ruas em nossas cidades já tirou a vida de um jornalista, Santiago Andrade, da Band. Primeira morte causada por manifestantes.

Mau sinal: estamos ingressando rapidamente na esfera dos fatos inéditos, das coisas jamais acontecidas. Este tipo de novidade não nos convém, conviria reverter esta tendência. As manchetes de toda a imprensa são testemunhas da situação: quanto mais nos aproximamos da Copa do Mundo, mais aumentam as tensões. O mutirão e a empolgação que se esperavam deram lugar a um preocupante cronograma de conflitos. O que está errado não pode ser ignorado, malfeitorias precisam ser identificadas e punidas. Mas a truculência precisa ser abortada.

A primeira providência consiste em evitar que o debate sobre a violência seja contaminado pela própria violência. É preciso evitar sobretudo as armadilhas da partidarização: a severidade de São Pedro neste verão não pode ser explorada eleitoralmente.

Um debate não é obrigatoriamente pacificador, mas cria condições para a negociação. E, se a imprensa não consegue assumir o seu papel de tribuna e prefere o papel de tribunal, o debate desanda.

No início de fevereiro, no período em que este Observatório estava em recesso na TV, o Globo e o deputado Marcelo Freixo (PSOL-Rio) envolveram-se numa controvérsia, felizmente em letra de forma e encerrada, por ora, pelas partes.

O clima de dedo no gatilho produziu o golpe de 1964 e, ao lembrá-lo dentro de poucas semanas, quando completará meio século, precisamos mostrar que amadurecemos, evoluímos e merecemos a democracia reconquistada.

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Lilia Diniz é jornalista