O Ministério da Justiça espera conseguir alinhar, ainda em junho, nos dois lados de uma mesa de negociações situada no terceiro andar do seu edifício-sede, em Brasília, representantes da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e de pelo menos uma dúzia das entidades que lá já estiveram na quarta-feira (30/5), na esperança de que o próprio Estado brasileiro tome alguma iniciativa para não ver descumprida a Constituição Federal no que ela determina ser uma obrigação do Poder Executivo: exercer a classificação indicativa das diversões públicas, cujo longo processo de regulamentação incorporou mais uma portaria, a de nº 264/2007, assinada pelo ministro Tarso Genro.
Desde que a Constituição Federal de 1988 foi promulgada, o Ministério da Justiça vem se estruturando para regulamentar e fazer cumprir sua obrigação legal, tendo para isso criado um departamento específico, treinado e contratado um quadro técnico de dezenas de funcionários e colaboradores, e tentado consolidar uma metodologia de classificação cujos preparativos incluíram a observação dos sistemas classificatórios de numerosos países, entre eles Estados Unidos e Austrália, além de vizinhos como a Argentina e o Chile.
A Portaria 264 significou, então, uma espécie de versão 6.0 num esforço de auto-superação técnica e de busca de legitimação, para tanto realizando consulta pública nacional, audiências públicas no Congresso e a escuta de dezenas de especialistas – reunidos num seminário internacional e num livro de análises –, além, evidentemente, de setores corporativos diretamente interessados.
Censura política
O que o Ministério da Justiça não contava era que, depois de tanto tempo exercendo a classificação indicativa de cinema, telenovelas, jogos eletrônicos e outros produtos audiovisuais, a Abert aparecesse com uma surpresa no panorama que próprio presidente Lula designou de ‘indústria de liminares’. Recorrendo ao Superior Tribunal de Justiça, a Abert conseguiu, com uma só tacada, paralisar todo um departamento encarregado da classificação diária de milhares de peças, sob a alegação de que classificar diversões por faixa etária e horários adequados é a mesma coisa que censura.
Que as pessoas absolutamente leigas considerem classificação indicativa e censura como uma coisa só, é compreensível; mas, para quem é do ramo, como as emissoras de rádio e televisão, que conhecem há décadas a diferença de procedimentos entre um e outro sistema, a atitude denota uma militância – lobby talvez seja a designação mais correta – contra uma tabela que, por vezes, representa menores perspectivas de faturamento.
Embora nada proíba, a classificação indicativa é uma forma de orientação à sociedade – e, sobretudo, aos pais – acerca dos graus de violência, sexo e drogas embutido nos conteúdos que diariamente a indústria cultural lança no mercado. Censura prévia é o exame de um conteúdo por parte de autoridade constituída, de forma a se liberar ou vetar o mesmo, de acordo com a vontade política de quem o examina.
Durante o regime militar pós-1964, as obras destinadas ao entretenimento passavam obrigatoriamente pelo Departamento de Censura da Polícia Federal, que as classificava não por horários, mas por faixas etárias e inadequações. Exemplo: o filme Rio 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos, era ‘proibido para menores de 18 anos’; já um documentário como O país de São Saruê, de Vladimir Carvalho, ficou nove anos retido na censura, tão-somente por um motivo político: não interessava ao governo que os brasileiros vissem numa sala de cinema cenas de seca e miséria nordestinas.
Também os conteúdos jornalísticos conheceram as restrições da censura política, ora pelo exame prévio de edições inteiras e indicações dos cortes a serem feitos, ora por meio de avisos telegráficos ou telefônicos acerca de assuntos que não poderiam ser veiculados. Exemplo: a prisão de religiosos – por sinal, um assunto neste momento em cartaz, no cinema, em Batismo de sangue, de Helvécio Ratton, baseado no livro homônimo de Frei Betto.
Competência do Estado
Neste momento, por força de liminar acatada pelo STJ, a pedido da Abert, tudo é livre. Voltamos aos tempos do famoso movimento de maio de 1968 na França, de onde ressoou para todo o mundo o ideário libertário segundo o qual é proibido proibir, tão cantado e decantado no Brasil por artistas que sofriam na própria carreira os efeitos da censura.
Por que será, no entanto, que um país que é referência para todo o mundo em matéria de direitos e liberdades, como a França, não se dá ao luxo de simplesmente liberar tudo, ao bel-prazer do mercado? Simplesmente, porque os franceses acham que a liberdade para a violência, para o sexo e para a apologia às drogas deve ter limites. Pois não foi lá que surgiram as primeiras manifestações contra os programas do tipo Big Brother?
No Brasil deste momento, vamos encontrar um estranho paradoxo: entidades que lutam pelos direitos humanos e pela proteção das crianças e dos jovens mobilizaram-se para pedir ao Ministério da Justiça que lute pela manutenção do sistema de classificação indicativa. Outrora, elas enfrentavam o Estado, para que o Estado não fosse politicamente discricionário. Agora, pedem ao Estado que se mantenha criterioso em relação à ameaça representada pela desenvoltura com que se tornam hegemônicos na indústria cultural os conteúdos de baixaria.
Ou, quem sabe, sejam as emissoras de rádio e televisão que, de tanto terem sofrido com a censura do regime militar, ficaram tão traumatizadas que não suportam ver pela frente qualquer coisa que se refira a faixas do tipo ‘especialmente recomendado, livre, 10, 12, 14, 16 e 18 anos’ – ou seja, os graus de inadequações estabelecidos pela Portaria 264/2007, para que a sociedade e a família sejam advertidas com relação às dosagens de violência, sexo e drogas contidas nos produtos de entretenimento e espetáculos.
Nada é proibido pela Portaria 264, pois os pais são soberanos para decidir se as tais ‘inadequações’ fazem sentido, ou não. Ao Estado compete, como determina a Constituição Federal, fazer as ‘indicações’.
Liderança enviesada
Durante a reunião de 30/5, em Brasília, à qual compareceram representantes de entidades, ONGs e do Ministério Público, um procurador chegou a solicitar do Secretário Nacional de Justiça, Antonio Biscaia, a imediata edição de uma nova portaria classificatória, simplesmente para o Departamento de Classificação não feche as portas.
A resposta foi no sentido de que a providência mais sensata já foi adotada: mobilizar a Advocacia Geral da União para que atue junto ao STJ no sentido de tornar sem efeito a pretensão libertária da Abert.
Numa demonstração ilimitada de ouvir todas as partes interessadas, já que o atual sistema classificatório brasileiro só foi transformado em portaria depois de vários anos de consultas, inclusive à Abert, o Ministério da Justiça quer ver sentados, na mesma mesa, lado a lado, tanto os defensores da Constituição Federal, no que ela estabelece como obrigação do Estado [classificar as diversões públicas], quanto os defensores da Constituição no que ela também estabelece: ‘É vedada toda forma de censura’.
O problema, no entanto, é que se a Abert não for convencida a retirar a liminar impetrada no STJ, e se o STJ julgar que classificação é censura, o Brasil será um dos poucos países a não adotar um sistema de classificação. Ou, entendendo de outra forma, pela primeira vez o Brasil estará à frente do mundo em matéria de liberdade.
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Jornalista, professor da Faculdade de Comunicação da UnB e coordenador do projeto de extensão SOS Imprensa