Segundo o filósofo francês Guy Debord, vivemos numa ‘sociedade do espetáculo’. Em razão do crescimento, diversificação e intensificação dos meios de comunicação, todas as relações humanas passaram a ser mediadas pela imprensa. Como os meios de comunicação constituem o local privilegiado onde a sociedade se contempla e critica, tudo se transforma ou pode se transformar em espetáculo.
Marx disse que a tragédia histórica renovada não passa de uma farsa. Se consideramos a farsa marxiana como uma encenação midiática, pode-se dizer que vivemos numa farsa diariamente renovada através dos meios de comunicação.
A política, arte de discutir e resolver em conjunto os problemas da poli (cidade), surgiu como uma expressão do cotidiano ateniense sob a democracia. Onde os súditos apenas obedecem não há política, mas tirania.
A mídia diz que vivemos numa democracia. Contudo, nossa participação na vida pública é tão limitada que não podemos, por exemplo, reduzir ou congelar os salários de nossos servidores públicos. Sob esta farsa democrática, nossos administradores, legisladores e juízes se comportam como verdadeiros tiranos e a mídia só não sugere que devemos apenas obediência aos mesmos para manter intacta a impressão de que a democracia é uma verdade insofismável.
Rachaduras visíveis
O processo eleitoral já foi contaminado pela mídia de tal forma que não há mais espaço para debate público em torno de propostas. A discussão de soluções para problemas que afligem a comunidade não fazem mais parte da política. Votar se tornou um ato vazio de escolha entre produtos de marketing (candidatos sabão em pó ou papel higiênico, como já disse em outro lugar). O candidato que falar melhor, que se apresentar melhor ou que melhor aprender a explorar os recursos da TV é eleito e conserva o mandato na próxima eleição.
A mídia sabe de que poder desfruta na ‘sociedade do espetáculo’ e comporta-se como se seu poder fosse intocável. Quando alguém afeta seus interesses, ajuda enterrá-lo exatamente como o colocou no altar. O neo-lacerdismo, amplamente difundido entre as empresas de comunicação brasileiras, demonstra satisfatoriamente que Carlos Lacerda estava à frente de seu tempo. Não foi à toa que Lula abdicou de seu poder administrativo e colocou nas mãos das próprias concessionárias do serviço público de televisão o direito de se auto-regulamentarem. O Estado que concedeu o direito de exploração de TV já não tem o direito nem mesmo de regulamentar seu uso (revogar uma concessão de TV por violação do regulamento estatal é algo absolutamente impensável).
Mas o governo Lula não é exatamente inocente. Lula foi eleito com ajuda de refinados recursos de marketing e há bem pouco tempo se descobriu os poderes extraordinários de que desfrutavam alguns publicitários evolvidos com sua candidatura e partido político. Desde que colocou a faixa, o ex-sindicalista tem usado a mídia com maestria.
A atuação da Polícia Federal e da Procuradoria Federal já rendeu vários espetáculos que mobilizaram de tal forma a atenção pública (ou seja, a atenção da própria mídia) que as rachaduras se tornaram visíveis. As discussões entre os próprios jornalistas se tornaram bastante ácidas porque alguns apóiam a cobertura das ações espetaculares da Polícia e Procuradoria federais e outros acham que o abuso no uso da imprensa é desnecessário ou nocivo (o que não deixa de ser estranho, pois quando um pobre fornece o espetáculo para um programa vespertino nenhum jornalista faz uma gritaria tão grande como a que vimos por ocasião da prisão da dona da Daslu).
Carências e frustrações
É nesse contexto que devemos avaliar a mega-operação das Polícias Civis estaduais. Os policiais civis seguiram o exemplo de seus colegas federais. Acreditando que estavam perdendo muito espaço para os bandidos (não na sociedade, mas na mídia) os policiais civis resolveram dar um show em escala nacional. Agora que o espetáculo acabou e pode ser considerado um sucesso de audiência (a cobertura das TVs, jornais, internet e revistas garantiu uma verdadeira saturação de informação sobre o assunto), os policiais devem estar bastante satisfeitos. Além de se tornarem celebridades nacionais, parte da população ficou com a impressão que tudo está bem no melhor dos mundos.
Contudo, mesmo numa ‘sociedade do espetáculo’, a realidade de carências e frustrações se impõe para além e aquém dos interesses da mídia e dos que dela fazem uso em proveito próprio (políticos, policiais etc.). E a realidade brasileira é o cartucho de 38 que explode próximo da nossa cara deixando um cheiro indelével de pólvora no ar. Terminado o show das polícias, a criminalidade não vai diminuir; vai apenas retomar seu espaço devido na TV pois as causas que lhe dão origem continuarão sem a devida cobertura e solução.
***
Em tempo [acrescentado às 7h57 de 28/3]: A crítica feita aqui à polícia em razão do espetáculo foi inserida dentro de um contexto amplo. Vários aspectos da ‘sociedade do espetáculo’ foram devidamente abordados, portanto, nenhum policial deve ficar magoado. Além disto, o fato de criticar o show da polícia não quer dizer que o autor seja amigo dos bandidos ou esteja a fazer apologia do crime. Muito pelo contrário. A criminalidade é um problema que deve ser combatido em duas frentes: supressão das causas sócio-culturais que a fomentam e repressão. Fazer da repressão um show midiádico não é capaz de suprimir as causas ou dar eficácia a repressão.
******
Advogado, Osasco, SP