Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Acordo une governo e cartolagem

Afundado em dívidas de todo tipo, o futebol argentino viveu dias de convulsão: sufocados, a federação local e os clubes romperam unilateralmente o contrato que outorgava à empresa TSC (Televisión Satelital Codificada) os direitos de transmissão do futebol hermano, negociando-os imediatamente com o Estado argentino. A justificativa? Descumprimento contratual, uma vez que os clubes resolveram se declarar lesados pelos valores recebidos pelos jogos.

De acordo com o contrato com a emissora, dona dos jogos desde 1991, pagavam-se 268 milhões de pesos anuais, incluindo-se todas as divisões e a exclusividade dos gols da rodada até a meia-noite de domingo, até que os mostrasse em primeira mão no programa Fútbol de Primera, que vai ao ar às 10 da noite. No acordo com o governo, o valor subiria para 600 milhões de pesos anuais, redentor para as combalidas finanças das equipes locais e sem exclusivismos contratuais.

A operação contou com uma fortíssima intervenção de ninguém menos que o casal Kirchner. A partir disso, podem-se encontrar diversas razões que levaram o próprio governo a entrar de sola na questão. Com as dívidas, o Sindicato dos Jogadores do país platino já tinha conseguido liminar que adiou o início do torneio de 14 para 21 de agosto. Entretanto, diversos fatores compõem o complexo jogo político de interesses e poder – não só no futebol, como também em termos de mídia.

Governo e clubes, uma sociedade mista

Desde o início da década passada, o futebol argentino ficava nas mãos de duas empresas: a citada TSC e também a Trisa (Tele Red Imagen S. A.), sendo que o capital de ambas é dividido igualmente pela Torneos y Competencias (TyC, emissora que transmite os jogos) e o grupo Clarín, maior conglomerado comunicacional do país e que recentemente entrou em rota de colisão com o governo dos Kirchner.

Não é o caso de entrar nos pormenores da pelea do casal K com as Organizações Globo do Rio da Prata, mas o ponto que mais a fermentou já vem de antes, quando o hoje deputado Nestor elaborou uma nova lei de radiodifusão (ainda em tramitação), que visa a combater monopólios e oligopólios e reservar mais concessões a emissoras de caráter social ou comunitário, o que obviamente desagrada aos barões da comunicação, tanto de lá quanto de cá.

Por lá, é notório o conflito entre o casal que governa a Argentina desde 2003 e o grupo Clarín, exaltado desde as derrotas governamentais para seu setor ruralista. Com a situação de penúria do futebol local, foi feita a articulação entre o presidente da Asociación de Fútbol Argentino (AFA), Julio Grondona, e a Casa Rosada, que cai como luva a ambas as partes no momento.

Pelo acordo, que não inclui a seleção nacional, o governo adiantará cerca de 100 milhões de pesos para dívidas mais imediatas e contingenciará outros 200 milhões para pagamentos de outras pendências dos clubes, inclusive com o próprio cofre público. A validade do acordo seria de 10 anos e as partidas, por ora televisionadas pelo Canal 7, público e aberto, e também pela TV Encuentro, pública, mas a cabo.

Para gerir as transmissões, governo e clubes trabalharão em conjunto através de uma sociedade mista, podendo revender os direitos para outros países e até mesmo para outras redes privadas da Argentina, de modo que, como diz Nestor, ‘o Estado não perca um único centavo’.

‘Grupo Clarín vendia jogos ao Grupo Clarín’

De quebra, o governo, até pela falta de estrutura para transmitir todos os jogos desde já, poderia ceder diversas partidas pelo país a emissoras regionais, o que também serviria para prestigiar e desenvolver uma gama bem mais ampla de canais e profissionais de comunicação e mídia.

Em um claro contexto de proveito político da situação por parte do governo, a medida pode no final das contas ser altamente revolucionária para os times e torcedores. Em sua argumentação, Kirchner (que já trocou camisas de seu Racing Club com o corintiano Lula) disse que o futebol é um inquestionável bem cultural do país e que todos os cidadãos devem ter o direito a assisti-lo sem ter de pagar por isso.

Explica-se: a TyC é um canal a cabo que transmite seis ou sete partidas por rodada. As outras três ou quatro (são dez ao todo) ficam por conta de seu braço TyC Max, neste caso em sistema pay per view. Por razões óbvias, os grandes jogos sempre ficavam com o segundo, de modo que para assistir às melhores partidas o torcedor deveria desembolsar alguma quantia (além da própria assinatura de TV a cabo).

E mais: a TSC, no que configurou parte das queixas de quebra de contrato, renegociava os jogos de PPV para outras TV´s a cabo. Dentre elas, incluíam-se a Cablevisión e a Multicanal, também de propriedade do grupo Clarín. Isto é, como escrito por Agustín Colombo, do diário Critica, ‘as operações se vendiam e se pagavam no mesmo escritório. O Grupo Clarín, dono de metade da TSC, vendia jogos da rodada ao… Grupo Clarín’.

Um debate polêmico e doloroso

Tal relação de evidente monopólio sobre o futebol já havia gerado processos por concorrência desleal no órgão de defesa do consumidor local. Pelo novo contrato, fica extinto o PPV e obrigam-se todas as partidas do Boca Juniors e do River Plate a serem mostradas em TV aberta. Vale lembrar que nem a final do último torneio (Vélez e Huracán) tinha sido veiculada para além da TV a cabo.

Marcelo Bombau, presidente da TSC, além de dizer que tomaria as medidas cabíveis na justiça, avisou que o ‘sangue ainda chegaria ao rio’, em claro aviso de que a empresa não entregará facilmente o seu ouro. Tanto é assim que simplesmente recorreu à embaixada dos EUA para pedir auxílio, alegando que interesses norte-americanos também eram lesados (três dos quatro acionistas da TyC são ianques).

A discussão, ainda de baixa repercussão por aqui, ganhou as ruas de todo o país, com todo tipo de opinião a favor e contra. A favor, a idéia, incontestável na visão deste colunista, de que, por se tratar de patrimônio e expressão cultural da nação, não pode de modo algum ficar em mãos exclusivas da TV a cabo, que impede o torcedor de ver jogos gratuitamente, algo difícil de se encontrar pelo mundo, ainda mais em países subdesenvolvidos. Contra, a também irrebatível tese de que existem maiores preocupações sociais para o governo local, o que no caso argentino é bastante claro.

Como resposta, o governo diz que apertará a fiscalização sobre as finanças dos clubes, criando um setor de seu Tribunal de Contas exclusivamente voltado para este fim e, como citado, não perderá um centavo do dinheiro investido na empreitada.

De toda forma, o rompimento pode gerar uma enorme onda de rediscussões sobre direitos televisivos, especialmente em países, como o Brasil, que sofrem do mesmo tipo de domínio por parte de uma emissora. Sendo o futebol um bem cultural e popular, parece válido que a partir de tal conceito se entenda que o Estado pode ter ingerência em seus rumos, tal como em outros serviços públicos, especialmente se não se restringe a apenas molhar a mão dos clubes e salvá-los da falência – e, ainda por cima, pagando melhor que o mercado.

Um debate que por aqui não seria menos polêmico e doloroso. Que torcedor não sonha em se ver livre de ter de esperar até as 10 da noite e o fim da novela para ver seu time do coração jogar? Não me parece que o futebol seria menos interessante com Palmeiras x Corinthians ao vivo na TV Cultura, seguido de um Fla-Flu na telinha da TVE e por aí afora.

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Jornalista