O convívio social num país democrático é regulado pelo arcabouço jurídico desse país. E ele precisa ser coerente. No caso do exercício profissional, a legislação construída ao longo do tempo no Brasil impõe regras para que as pessoas possam exercer certas profissões. Isso é, obviamente, uma restrição de liberdade. Como, aliás, toda lei é. Alguém poderia desejar correr a qualquer velocidade no seu carro, passar qualquer cruzamento como bem entendesse. Mas há leis que restringem essa liberdade em benefício da sociedade. Viver em sociedade (contingência humana) implica renúncia a parcelas de liberdade.
Imaginemos um panorama de total liberdade profissional, com qualquer pessoa podendo exercer o ofício que desejasse. Suponhamos que alguém colocasse na sua porta uma placa: ‘Advogado’. E começasse a atender clientes. Poderia sair-se muito bem, e seria recomendado a outras pessoas por seus clientes. Ou poderia acontecer o contrário. Isso seria a regulação pelo mercado. Quem fosse prejudicado pelos maus serviços de um profissional poderia eventualmente acionar a Justiça para ser indenizado. Mas se o cidadão hipotético resolvesse exercer a Medicina e matasse alguém, o prejuízo não poderia ser indenizado…
Como criar um sistema de proteção social que ateste a capacidade de determinada pessoa para exercer certa atividade profissional? Na Idade Média, isso era feito pelas corporações de ofício. Por exemplo: um sapateiro de qualidade reconhecida poderia receber aprendizes, aos quais ele ensinaria seu trabalho, e, conforme o progresso do aprendiz, este poderia ir assumindo algumas tarefas e receberia ‘títulos’ para atestar seu nível profissional: meio-oficial, oficial e, por fim, mestre (sistema que persiste, por exemplo, na construção civil brasileira nas funções de base).
Nada a ver
Com o surgimento das universidades e, depois, dos estados democráticos, a certificação passou a ser feita pelas instituições de ensino. Como acontece no Brasil – e, teoricamente, é um sistema bem ponderado: as instituições de ensino precisam de autorização e reconhecimento do poder público, que as fiscaliza. Assim, teoricamente, há segurança para a sociedade: quem cumpre de modo adequado suas funções de aprendiz recebe um certificado (diploma) atestando que está apto a exercer determinada profissão, e esse certificado só pode ser emitido por instituição credenciada e fiscalizada pelo Poder Público. Tudo muito bem pensado (ao menos na teoria) e feito de modo a garantir segurança ao cidadão, que certamente se sente mais tranquilo ao ser atendido com um médico que tenha um diploma reconhecido ‘oficialmente’.
Por que, então, para o exercício de determinadas profissões é exigido o diploma superior e para outras não? Trata-se de uma questão de legislação construída pela força maior ou menor de determinados grupos profissionais, pela tradição maior ou menor de determinadas carreiras. Ninguém pode ser corretor de imóveis ou massoterapeuta sem o devido registro profissional (nesses casos, obtido após a obtenção de certificados em cursos técnicos). Isso se deve, basicamente, à capacidade de articulação dos envolvidos nesses ofícios, que conseguiram criar democraticamente legislação específica para os seus casos. Corretores de imóveis e administradores têm Conselhos Federais que regulam e fiscalizam o exercício profissional. Músicos e advogados têm suas Ordens profissionais para os mesmos efeitos.
A existência ou não de Conselho ou Ordem de determinada profissão, assim como a exigência ou não de diploma de nível superior para exercício profissional, pouco têm a ver com a suposta importância social dessas profissões. Está relacionada, muito mais, ao poder de articulação e à representatividade de cada categoria.
Nesse sentido, o fim da exigência do diploma de jornalista para o exercício da profissão quase nada tem a ver com a possível importância social da profissão, ou com a liberdade de expressão do pensamento, ou com a determinação constitucional de que o exercício profissional é livre para todo cidadão. Também não está relacionada ao avanço das tecnologias da comunicação, à proliferação dos blogs ou qualquer coisa do gênero.
Dever de todos
Lutar pela exigência do diploma é uma legítima atitude da classe dos jornalistas, dentro das regras da democracia e do arcabouço jurídico-legislativo brasileiro. Não tem nada de obscurantista ou policialesco. E há muitas pessoas, muitas mesmo (e entre elas me incluo) que acreditam que, dadas as atuais regras legais, a obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo é adequada, útil e proveitosa não só para os jornalistas, mas para toda a sociedade.
Pensar utopicamente num mundo de maior liberdade para todas as profissões também é aspiração legítima. Que seria do mundo sem os utópicos? Nesse panorama utópico, seria muito bom que não se exigisse diploma superior para qualquer exercício profissional, do médico ao sapateiro. Mas, para isso, e tendo em vista os interesses da sociedade, deveria haver algum sistema que atestasse a capacidade profissional – em alguns casos (como o do sapateiro), o mercado mesmo, em outros, um sistema ainda a ser pensado, talvez um exame aprofundado feito por instituições credenciadas pelo Poder Público. No entanto, eliminar a exigência apenas para os jornalistas é ilógico dentro do nosso arcabouço jurídico.
Por fim – e independentemente de qualquer exigência deste ou daquele diploma para o exercício desta ou daquela profissão –, lutar por uma melhor qualidade do ensino em todos os níveis, e não só no universitário, deveria ser dever de todos. Quando um determinado candidato às últimas eleições presidenciais dizia que a solução para o país só podia estar baseada no tripé: ‘Educação – Educação – Educação’, muitos o ridicularizaram, vários chamavam seu discurso de ‘samba de uma nota só’. Pois eu acredito nesse samba.
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Jornalista e professor universitário, Curitiba, PR