TROPA DE ELITE
Guerra é guerra, dizia o torturador, 17/10
‘‘Tropa da Elite’ apresenta o testemunho do capitão Nascimento como a expressão mais fiel da realidade da guerra do tráfico. Essa pretensão, além de ser falaciosa, flerta perigosamente com a frase que virou título-denúncia de um livro sobre a ditadura.
‘Tropa de Elite’ pretende ser um filme realista. Essa pretensão aparece no cartaz promocional do filme que afirma que, entre as muitas versões de uma guerra, a que é a apresentada ali é a verdadeira. Não é. A menos que se considere que testemunhos em primeira pessoa sejam um meio de acesso privilegiado à realidade. Na verdade, costumam ser um meio de acesso privilegiado à percepção de quem testemunha. Se tomarmos a narrativa baseada nas experiências do capitão Nascimento como retrato fiel do que acontece nos morros do Rio de Janeiro porque é a narrativa de alguém que participou diretamente da guerra, deveríamos fazer o mesmo com uma narrativa de um traficante que relate como vê a mesma guerra. Teríamos, então, duas narrativas, dois testemunhos, duas realidades. Valeria a mesma lógica também para o testemunho de um morador de favela que vivencia a mesma guerra.
A pretensão em transformar o testemunho do capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) em representação fiel da realidade conspira logicamente contra si mesma. Mas, do ponto de vista da recepção do filme na sociedade acaba funcionando. O padrão médio dos comentários de quem vê o filme reconhece nele uma narrativa realista. Há elementos para tanto: a violência da guerra do tráfico, a tortura como prática de policiais e traficantes, a corrupção policial, a hipocrisia de setores de classe média, entre eles. O resultado final evidencia que mostrar elementos de realidade é uma condição necessária porém não suficiente para representar ‘a realidade’. Alguém poderá questionar: quer dizer que você (o autor destas linhas) está mais habilitado para falar da realidade da guerra do tráfico do que alguém que está na linha de frente dessa guerra?
Uma teoria cheia de buracos
Certamente que não, é a resposta. No entanto, esse texto não tem a pretensão de falar da ‘realidade’ da guerra do tráfico, mas sim de questionar o suposto privilégio realista do testemunho de uma das partes do conflito. A fragilidade dessa pretensão fica exposta no filme. O capitão Nascimento, personagem central e condutor da narrativa, tem uma teoria própria sobre as causas da guerra e o melhor meio de enfrentá-la. Trata-se de uma teoria cheia de buracos: buracos de bala e buracos lógicos. Desde o início, a narrativa nos alerta para o fato de que ‘o policial também é um ser humano’, com problemas e angústias pessoais. Do outro lado da trincheira, estão os traficantes que, por oposição, são apresentados como animais ferozes que devem ser abatidos à bala, versão esta que, provavelmente, conta com a simpatia de considerável parte da sociedade.
Em um nível intermediário aparecem os policiais corruptos e os ongueiros hipócritas que consomem drogas e fazem passeatas contra a violência. E, de um modo muito lateral, aparecem algumas referências sobre o envolvimento de políticos. No meio desse pântano, a tropa do BOPE é apresentada como o que há de melhor na polícia. São os policiais melhor treinados, melhor equipados e incorruptíveis. O processo de seleção para candidatos a integrar o batalhão mostra que seus comandantes sabem quem é corrupto e quem não é, na polícia. As ações da tropa de elite, no entanto, convivem diariamente com o problema do estreito vínculo existente entre o tráfico e a corrupção policial. Mas, no filme, não incidem sobre ela. Ou seja, a tropa de elite, o que há de melhor na polícia militar, é absolutamente ineficaz para enfrentar um dos principais elos da violência. Em que sentido, pois, ela pode ser chamada ‘de elite’?
O argumento dos defensores da tortura
A resposta aparece no filme. Aparece já no símbolo do BOPE: a caveira, o símbolo da morte. Os policiais do batalhão são profissionais altamente treinados – melhor treinados do que o exército de Israel, assegura o capitão Nascimento – e, quando sobem o morro, o fazem de maneira profissional, só atiram para matar. As operações especiais, tal como nos é mostrado na tela, incluem tortura e execuções sumárias. A reação média de quem assiste ao filme parece aprovar tais métodos. Ela pode ser sintetizada na máxima repetida exaustivamente pelo líder da tropa: estamos numa guerra e, numa guerra, vale tudo. Ou como afirma o título de um livro sobre a ditadura militar (de autoria de Índio Vargas), ‘Guerra é guerra, dizia o torturador’. Sempre foi esse, em primeira e última instância, o argumento dos defensores da pena de morte, da tortura e das execuções sumárias. Essa é ‘a realidade’, dizem.
A ‘realidade’ apresentada no filme atribui forte responsabilidade aos ongueiros de classe média, e aos jovens da classe média carioca em geral, pela violência do tráfico. ‘Nós temos que limpar a sujeira que vocês fazem’, diz um dos aspirantes a ser futuro comandante do batalhão. Esse mesmo personagem irrompe em uma manifestação de uma ong contra a violência, enchendo de porrada um destes jovens. Em relação aos policiais corruptos, no entanto, o que vemos é que eles são impedidos de entrar no BOPE, mas liberados de qualquer outra condenação. Tudo se passa como se a existência de policiais mal pagos, mal treinados, mal equipados e corruptos fosse uma condição para a própria existência da tropa de elite que, sem esconder seu desprezo pela ‘ralé’ do resto da polícia, acaba se constituindo em uma espécie de grupo paramilitar. Um grupo que tem vida própria e que está fora do Estado, como fica evidenciado na cena do enterro de um dos membros do grupo, quando a bandeira nacional é encoberta pela caveira do BOPE. A mensagem aí é forte é explícita: o Estado faliu, vocês precisam de nós.
De leitor de Foucault a matador
Há um outro elemento que conspira contra o suposto caráter ‘de elite’ da tropa. Desde o início do filme, o capitão Nascimento nos conta que quer largar aquela vida e está em busca de um sucessor. O escolhido, no final, é o mais equivocado dos personagens. André Matias estuda Direito na ‘melhor faculdade do Rio de Janeiro’, é leitor de Foucault e convive com os ‘ongueiros’ detratados no filme. Desde o início, o capitão Nascimento afirma que essa combinação era algo incompatível para um policial, principalmente para um integrante do BOPE. Matias se apaixona por uma ongueira, sobe o morro, convive com traficantes e oculta sua identidade de policial de seus colegas de faculdade. Resultado: acaba contribuindo para a morte de três pessoas. Sua foto durante uma ação policial é publicada nos jornais e sua identidade é revelada. Ele parece não dar bola para o fato, não avisa a ninguém, e acaba enviando um colega e amigo para a morte.
Esse verdadeiro ‘gênio’ acaba sendo o sucessor do capitão Nascimento na tropa de elite. Na cena final, ele é batizado no comando com uma doze na mão, pronto a explodir a cara do traficante que matou o seu amigo (morte pela qual ele também foi responsável), em mais uma execução sumária. Deixou de ser um ingênuo, tornou-se um filho da caveira, pronto para matar. Alguns críticos disseram que o filme é uma peça publicitária do BOPE. Uma publicidade esquisita, pois o que aparece é um grupo paramilitar que age à margem da lei, usa a tortura como método e pratica execuções sumárias impunemente. É isso? É preocupante, para todos aqueles que não desistiram de idéias como democracia, lei e direito que essa representação da ‘realidade’ seja aplaudida em algumas salas de cinema. Os aplausos têm endereço certo: seu objeto de desejo é a caveira do BOPE.
Entre as ongs e os paraísos fiscais
O privilégio dado ao testemunho do capitão Nascimento e a pretensão de apresentá-lo como uma fiel expressão da realidade mal consegue esconder outras facetas dessa realidade que, ou aparecem muito lateralmente no filme ou simplesmente não aparecem. O tráfico de drogas é hoje uma das indústrias mais poderosas do mundo, com braços no sistema financeiro, político, jurídico e empresarial. Enfatizar a responsabilidade de ongs na cadeia da violência e silenciar, por exemplo, sobre o papel dos paraísos fiscais na lavagem de dinheiro advindo do tráfico denuncia essa pretensão de realismo. Um filme não tem a obrigação de falar de tudo ao mesmo tempo, poderá dizer alguém. É verdade. E é justamente por isso que, aquilo que ele retrata, é apenas o testemunho de alguém envolvido em uma guerra. Querer alçar esse testemunho à condição de ‘o mais fiel retrato da realidade’ é um passo gigantesco que, dado o conteúdo do testemunho, flerta perigosamente com a máxima: ‘guerra é guerra, dizia o torturador’.’
DESPREZO
O ‘jornalismo de esgoto’, a pauta torta e a intolerância, 18/10
‘No artigo dessa semana pretendia tratar dos mais de 250.000 empregos formais (com carteira assinada) gerados no mês de setembro passado e também dos cerca de US$200 bilhões em investimentos, previstos para os próximos cinco anos no planejamento de algumas grandes empresas como Petrobrás, Vale do Rio Doce e Votorantim, e de mais uma siderúrgica que será instalada no estado do Maranhão, num investimento de mais US$4,5 bilhões – e sobre os benefícios e vertiginosos efeitos multiplicadores desses fatos na economia, em nossas vidas e, claro, no desenvolvimento do país. Mas, sem deixar de fazer a necessária ressalva em relação ao conservadorismo da diretoria do Banco Central, que já se tornou deletério ao país. Sem deixar de falar também nos graves problemas na área da saúde nos estados (epidemia de dengue), da segurança pública e na grave crise da educação em SP.
Pretendia tratar aqui desses assuntos, digamos, mais nobres, relevantes e importantes para todos nós, cidadãos dessa grande nação ainda em construção. Abordar a pauta que importa e não a pauta da impostura, essa outra pauta, torta, que nos é imposta diariamente pelos sacripantas da mídia em seu jornalismo de esgoto. Pretendia. Não será possível, porém, fazê-lo da forma desejada, pois me sinto compelido a abrir aqui um breve parêntese.
Lembro-me, perfeitamente bem, que já havia lhes sugerido, aqui mesmo na Carta Maior, em crônica publicada anteriormente, o desprezo aos desprezíveis – no caso, os jornalistas e intelectuais que, por suas palavras, textos e ações, seriam merecedores do nosso mais completo desprezo. Porém, nem sempre, reconheço agora, o mero desprezo (aos desprezíveis) parece ser suficiente para, se não emudecer, ao menos constranger essas vozes (e penas) maledicentes (pagas, e muito bem pagas, pela direita para fazer o serviço sujo) – creio não ser suficiente relegá-las ao merecido/devido olvido.
Já disse também, em um artigo anterior, que nem tudo é permitido na disputa política e no debate – há que se evitar as diatribes, os xingamentos e a arrogância/petulância, portas de entrada da intolerância. O debate público deve propiciar uma cordata troca de idéias, e assim, quem sabe, algum ganho para contendedores e leitores.
Tratei, aqui nesse espaço, de forma secundária, e com a devida ponderação, por exemplo, do caso Renan – ou ‘Renangate’, como queriam alguns. Uma pauta que tentaram, por diversas e reiteradas vezes, por diversos dias, nos empurrar goela abaixo e que monopolizou o debate político por mais de quatro meses. Estaria com isso fazendo a defesa de políticos corruptos, ou sendo leniente ou conivente com estes? Evidente que não! Sejamos honestos, nos livramos de um, mas não será exterminando um só gafanhoto que salvaremos a nossa lavoura, já demasiada arcaica, dessa verdadeira praga. Finalmente, ao que parece, estamos livres de Renan. Mas e os outros?
Quanto tempo perdido, não? Gastaram muita vela para pouco (e mau) defunto. Enquanto isso – enquanto todos os olhos e ouvidos da sociedade se voltavam para esse caso –, inúmeros projetos de lei criavam poeira nos escaninhos e gavetas do legislativo, as reformas essenciais ao país, como a tributária e a política, só para citar duas delas, estão (ainda) paradas, não andam. Questões importantes como a discussão sobre a CPMF, sua redução ou sua extinção progressiva e paulatina (uma vez que não dá para acabar com um imposto tão importante numa ‘canetada’, de forma voluntarista) ou a melhoria do nosso quadro/sistema político (impondo impedimentos legais, por exemplo, à promiscuidade entre políticos e empresas privadas). Essas importantes questões só serão resolvidas, de uma maneira séria, através dessas reformas – o resto é mera cortina de fumaça ou ‘manchetismo’ e sensacionalismo baratos e hipócritas para vender jornais e revistas.
A pauta torta, porém, prossegue travestida em suas diversas e chamativas ‘verdades’ – que mais parecem, diga-se, coloridos badulaques. Um ‘luminar’ das trevas do jornalismo de esgoto lança um livro cujo título é um desrespeito ao presidente da República. Um outro diz que alguns livros didáticos distribuídos gratuitamente pelo governo fazem doutrinação política ou ideológica (proselitismo). E seguem testando hipóteses e nos impondo imposturas.
Em outro front perde-se um tempo precioso. Manchetes e mais manchetes… Artigos de fundo são redigidos e publicados com pompa e circunstância, antropólogos e psicanalistas se manifestam, centenas de cartas de leitores são enviadas às redações, um representante do bom-mocismo global ganha capa em duas revistas semanais e um jovem escritor da periferia teve seu quinhão do direito a vez e voz. Os dois contendores dessa falsa polêmica foram execrados, exaltados, depois esquecidos. Todo esse debate foi ocasionado, você sabe, pelo furto de um relógio, de uma marca tanto cara quanto ‘brega’, de uma celebridade. Enquanto isso, no mundo real, jovens mães jogam seus recém-nascidos nos esgotos, lixões e sarjetas. E a violência urbana ganha características de uma pandemia.
Por outro lado, você pode até pensar que é mera falta de assunto dos jornalistas. Mas não é. É a pauta que está torta mesmo.
Um outro exemplo, ou um outro front: as reiteradas notícias, reportagens e manchetes que tratam, notadamente agora, mas já o fazem há muito (creio que desde o primeiro dia após a posse), da eleição para a Presidência em 2010. São, na verdade, apenas uma estratégia sub-reptícia de interdição do atual governo – pasme, você tem todo direito de não acreditar, mas já teve ‘jornalão’ que deu manchete para uma possível candidatura Lula em 2014! Parece inacreditável, risível até, mas essa foi a manchete de primeira página do jornal Folha de S.Paulo no dia 14 de outubro último. Já começaram até as pesquisas de intenção de voto! A indústria do voto começa a funcionar a todo vapor.
A estratégia subliminar é óbvia: esvaziar o segundo mandato do presidente Lula. Ao invés de tratar sobre os inúmeros problemas que afligem os brasileiros; ao invés de focar as mudanças e transformações que estão ocorrendo, e, em paralelo, cobrar ações e políticas públicas do governo, a grande imprensa resolveu ‘encerrar’ precocemente o mandato presidencial. Não importando se estamos apenas em meados do décimo mês do primeiro ano do segundo governo de um presidente eleito com o voto da esmagadora maioria dos brasileiros. Não importando, tampouco, se o país necessita fazer reformas urgentes e necessárias, e aproveitar assim o empuxo favorável e o ciclo virtuoso por que passa sua economia. Os ventos não nos serão para sempre favoráveis.
Aliás, o país, na escrita canhestra dessa pauta torta, é o que menos importa.
[Recebi e-mail de um leitor, indignado, contendo post do blog de um desses jornalistas de esgoto. O texto contém inacreditáveis vitupérios e diatribes endereçados ao jornalista Alberto Dines. Contém adjetivações e acusações extremamente graves e covardes. Chega a ser cruel, desumano até.
O autor desse verdadeiro linchamento retórico ao jornalista Dines (do qual, aliás, discordo de quase tudo que diz, mas por quem tenho o maior respeito) é um dos mais sórdidos da mídia brasileira (trata-se do mesmo ‘para-jornalista’ que num dia esculhamba o Mino Carta; no outro, avacalha o Luis Nassif; no dia seguinte, o Paulo Henrique Amorim; depois, o Elio Gaspari, em seguida o Flávio Aguiar, depois o Jânio de Freitas; depois a Helena Chagas; depois a Tereza Cruvinel; depois… E por aí segue em sua toada infamante – talvez, quem sabe, como uma estratégia de chamar a atenção para sua pequenez petulante. Como ninguém lhe dá bola (lembre-se do ‘desprezar os desprezíveis’), ele apenas prossegue, todos os dias, a lançar seus dejetos e sua cólera no esgoto – seja em seu blog ou na revista que lhe dá guarida, situada às fétidas margens do Rio Pinheiros, na capital paulista, mas que deságua sua retórica odienta e vil por todo o país.
Apesar de já acumular razoável vivência e experiência no jornalismo, em variadas polêmicas e nos mais renhidos debates de idéias, causou-me forte mal-estar, assombro e estranheza, perceber (e aprender) que o espírito do homem poderia descer a níveis tão baixos.
Assim como muitos dos meus leitores, não concordo com todas as idéias e opiniões do jornalista Alberto Dines (bem como com as opiniões e idéias de muitos dos aqui citados), mas tenho por ele enorme consideração e respeito. Ninguém é infalível ou santo, isento de pecados, decerto, ou imune a erros e equívocos. Mas todos merecemos, no mínimo, o devido respeito e/ou a mínima cordialidade.
Lula Miranda é economista, poeta e cronista. É secretário de Formação para a Cidadania do SEEL – Sindicato dos Trabalhadores em Editoras de Livros do Estado de SP. Integra o Coletivo de Formação da CUT São Paulo.’
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