O jornalismo brasileiro está perdendo uma excelente e rara oportunidade de ser agente transformador da sociedade. Desde 23 de junho, está sendo noticiada a agressão de Sirlei Dias de Carvalho Pinto, uma empregada doméstica que foi violentamente espancada no Rio de Janeiro por uma manada de playboys. A saraivada foi justificada por eles devido à confusão que fizeram, pensando que se tratava de uma prostituta.
Lamentavelmente, fatos como esse já aconteceram antes, vide caso Galdino Jesus dos Santos, em 1997, cujo paralelo já foi feito por Luiz Weis [ver ‘Os 5 de Sirlei e os 5 de Galdino‘], lembrando que cairão nossos queixos se a impunidade não grassar também no caso da doméstica. No entanto, alerto aqui para o fato de que, em apenas quatro dias de cobertura, a mídia já está deixando para trás essa tragédia moral.
Uma rápida pesquisa na web mostra que o único dos grandes veículos que ainda mantêm uma referência ao crime em suas primeiras páginas, menos de uma semana depois, é o G1. Nem o Terra, o iG ou o UOL mantiveram o destaque, já encoberto por uma outra tragédia – o assassinato de um casal em frente ao filho de sete anos, no bairro paulistano do Morumbi. Nesse momento, as estapafúrdias, arrogantes, ignorantes, machistas, preconceituosas e absurdas declarações de Ludovico Ramalho Bruno, pai de um dos agressores, já ficaram em milésimo plano para a mídia, que está perdendo o bonde da opinião pública.
Mais branco e mais rico
Nos escritórios, escolas, parques, bares, em todos os cantos, a pauta coloquial é essa: ‘Vocês viram o que disse um dos pais dos agressores?’ E esse espanto é mais do que óbvio. O tal Ludovico tem a cara-de-pau de dar entrevista nos seguintes termos:
‘Esses meninos cometeram um erro e têm que pagar por isso, mas são estudantes, têm endereço fixo. Não podem ser jogados a uma cela com criminosos.’ ‘É lógico que deveriam estar alcoolizados ou drogados.’ ‘Sirlei é mais frágil por ser mulher, por isso fica roxa com apenas uma encostada.’ ‘Não é justo manter presas crianças que estão na faculdade, estão estudando, trabalham. Não concordo com a prisão na Polinter, ao lado de bandidos.’ ‘Manter essas crianças presas é desnecessário. Elas estudam, têm famílias e não são bandidas.’ ‘Queria dizer à sociedade que nós, pais, não temos culpa.’
Causa pasmaceira constatar que há gente assim, vivendo num mundo paralelo, reduzindo a pó o conceito de respeito ao próximo e igualdade perante a Lei. Para esse Ludovico, as ações do filho não são culpa, nem indiretamente, da educação passada (ou não) pelos pais. Para Ludovico, o filho dele é muito mais ser humano do que a vítima. Muito mais branco, mais rico, mais bonito, mais bem nascido, mais estudado e, por isso, mais digno de condescendência social. A Lei tem que ser diferente para o filho dele.
Conversas e cochichos
Esse Ludovico acha, ainda, que ‘encostar’ numa mulher provoca hematomas. Será que se o filho e os amigos ‘encostassem’ nele do jeito que fizeram com Sirlei ele resistiria masculamente, sem arranhões?
Se ele pensasse assim e permanecesse com a boca fechada, ótimo. Mas no instante em que ele se enverniza e diz isso abertamente, passa a ser obrigação da mídia destacar esse tipo de pensamento retrógrado que reside, principalmente, em muitos dos que ocupam o topo da pirâmide social deste país. Esse tipo de caráter, se não for publicamente e duramente combatido, perdurará.
Mas, não. Enquanto o público fica chocado com essas declarações, os jornalistas não ficam. Preferem ignorar e fingir que não ouve o clamor das conversas e cochichos das esquinas, deixando uma personalidade medieval como a de Ludovico em sua zona de conforto, sem a devida resposta social.
Revolta e choque
Alguns sites noticiosos até colocam as declarações nas matérias, com aspas em negrito e em cor vermelha. Mas só. Fica faltando a palavra de um sociólogo, um psicólogo, um pensador crítico para contrapor com veemência aqueles absurdos, deixando claro que aquele tipo de pensamento é totalmente contrário aos ideais humanos do século 21, e que a sociedade não aceitará esse comportamento passivamente. Faltam os artigos deixando claro que só estaremos livres dos Ludovicos quando o constrangimento a essas idéias e declarações for tão grande que nem a classe social, nem as dezenas na conta bancária poderão cobrir.
Se os jornais, sites, revistas, rádios e emissoras não derem mais atenção ao sentimento social, principalmente os de revolta e choque, então a opinião pública está atropelando o jornalismo que, surdo, deixa de refletir essa opinião, perdendo seu objetivo e a chance de ser relevante.
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Jornalista, São Paulo, SP