Pode ser que as coisas neste texto pareçam técnicas demais, talvez devendo ser publicadas em uma revista científica. Contudo, senti a obrigação de fazer as presentes notas em decorrência das recentes observações do jornalista Maurício Tufanni em seu blog, reproduzidas aqui no OI.
Tufanni está sempre atento a esse tema e, como têm sido recorrentes suas opiniões a esse respeito, uma atualização se faz necessária.
A morte encefálica (ME) gera por vezes ampla polêmica e quando o assunto foi pela última vez, creio, aqui discutido, o prezado Maurício insistiu nas colocações de um importante autor norte-americano da Clinica Mayo de Rochester, Eelco Widjics. Da mesma maneira como Tuffanni volta e meia aponta reservas ao teste da apnéia, componente do protocolo de exame de ME, e reclama que poucas vezes o assunto é discutido pelos médicos em público, espero estar auxiliando a reparar essa questão. Ainda mais, embora o jornalista sempre cite trabalhos recentes, continua a dar crédito a determinado paper publicado em revista científica brasileira de indexação internacional, mas que já possui dez anos de existência e, portanto, tempo demais para ser considerado como atualizado em seus pontos de contestação.
Quando escrevi artigo para o OI sobre ME, há pouco tempo atrás, ao comentar o teste da apnéia fiz considerações relativas a um achado neuropatológico típico dessa condição, o chamado ‘cérebro ou encéfalo de respirador’.
Pequeno número de pacientes
Acontece que o próprio Widjics, em um dos números mais recentes da provavelmente mais importante revista científica da especialidade, Neurology, estudou com Pfeifer 43 cérebros de pacientes que tiveram o diagnóstico de ME rigorosamente estabelecido segundo o protocolo americano, que basicamente é o mesmo utilizado no Brasil, incluindo o teste da apnéia.
Resumidamente, os autores encontraram muita variabilidade dos achados ao exame microscópico, de sinais de isquemia discreta à destruição importante do tecido encefálico e, interessantemente, não observaram um caso sequer de achados compatíveis com o citado ‘encéfalo de respirador’. Essa é uma observação importante e embora não invalide o diagnóstico de ME, tampouco os métodos utilizados para fazer o seu diagnóstico – incluindo o teste da apnéia – é curioso o trabalho apontado. Afinal, Eelco Widjics é dos autores e pesquisadores mais renomados na área e constantemente publica sobre ME; além do mais, pertence a uma das mais respeitadas instituições médicas da América do Norte.
Uma das conclusões possível de se fazer ao ler o trabalho citado é de que, independentemente de idade, da causa da ME ou quaisquer outros fatores que pudessem emprestar lógica ao assunto, ocorre a grande variação citada (que Widjics e Pfeifer dividiram em três grupos principais). Por outro lado, analisaram apenas cerca de 40 cérebros e as primeira descrições do chamado respirator brain datam dos anos 1970 e início dos 1980 – naturalmente, um número muito maior de cérebros foi examinado desde essa época, com os achados validados.
Qual seria a razão para essa discrepância em artigo recente, atualizado, metodologicamente adequado e pesquisado por autores competentes de instituição idem? É cedo para fazer maiores ilações, mas o pequeno número de pacientes estudados pode estar interferindo, assim como a variação talvez tenha a ver com o tempo em que os pacientes ficaram conectados a equipamentos de ventilação artificial – respostas deverão aparecer no futuro.
Protocolo continua válido
O artigo de Widjics ganhou importante comentário feito por S. Andrew Josephson, da Universidade da Califórnia em São Francisco, EUA, em fórum científico on-line ligado a um dos mais conceituados livros-texto de medicina interna, o chamado Harrison: para esse autor, o trabalho de Widjics merece aplausos e, além de trazer o curioso fato novo de não se encontrar algo conhecido há tempos, também mostra que achados neuropatológicos variam tanto que não teriam utilidade para o diagnóstico clínico – como certamente não é rotina fazer biópsia cerebral na suspeita de ME, as alterações no exame patológico certamente deveriam ser refletidas em exames complementares, desde a tomografia computadorizada até os mais sofisticados, como a ressonância magnética e o PET-scan. Dessa maneira, a principal contribuição da pesquisa de Widjics e Pfeifer seria embasar ainda mais a opinião majoritária de que o diagnóstico de ME é clínico, não podendo basear-se em exames subsidiários.
Concluindo, as coisas continuam da mesma maneira, mas as pesquisas continuam. Como em toda a medicina, ninguém pode ser arrogante ao ponto de dizer que uma coisa é verdade absoluta e imutável – mas o estudo constante e recorrente apenas ajuda a entender melhor as coisas, a trazer novos dados a serem pensados e mostra ainda que, ao contrário do que alguns imaginam, ninguém ficou parado em cima dos protocolos do comitê ad hoc da Harvard Medical School, de 1968: o assunto continua a ser investigado e, se necessário, correções deverão ser feitas, com base na ciência séria, e não no imediatismo e na emoção. Mas volto a dizer: por enquanto, apenas está sendo validado o protocolo e o conceito de ME, aprimorando o seu entendimento e não se revogando nenhum item a respeito, incluindo aí o teste da apnéia.
******
Médico, mestre em neurologia pela Unifesp, ex-coordenador da comissão técnica de ME do CRM de SP e ex-membro da câmara técnica de ME do CFM