Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Algemas, um imperativo legal

Ele tem consciência da grandiosidade de seu patrimônio material; de o quanto e o que pode comprar com seu dinheiro. Mas não percebeu o quanto é valioso em si próprio; o seu valor intrínseco. Talvez por isto tenha esperneado tanto quando preso e algemado; não tanto pela prisão, mas pelas algemas.

Sinceramente, é de se admirar, é de se espantar. Jamais existiu um fato que causasse tanta comoção no seio do mais alto poder judiciário deste país como a prisão do sr. Daniel Dantas. Sua dignidade parece incomparável. Aos olhos do STF, com poucas prováveis exceções, a dignidade do Dalai Lama, hoje, não se compara, como também não se comparariam a da Madre Teresa de Calcutá, da Irmã Dulce, de Chico Xavier e, talvez, até a de Jesus Cristo, à do Daniel Dantas. É intocável; incensurável. O puxão de orelhas que o sr. Daniel Dantas deu no STF fez este adotar postura mal refletida sobre o uso das algemas. Para resguardar o santíssimo e outros tantos santos de futuras bem feitas prisões, o egrégio STF olvidou situações rotineiras em que é imperativo o emprego de algemas.

A bem da verdade, a prisão em geral, a ordinária, a prisão responsável, deve ser feita mediante o emprego de algemas. Excepcional deve ser a prisão sem o seu emprego. Preso, a partir de então, o indivíduo fica sob custódia e responsabilidade do Estado. Reza o art. 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal brasileira: ‘É assegurado aos presos o respeito à sua integridade física e moral.’ E para dar cumprimento ao mandamento constitucional, o policial deve ter e conduzir o preso sob sua guarda diligentemente, sob pena de responsabilidade funcional.

Preservação da integridade física

Diz o art. 37, § 6º, da nossa Carta Magna: ‘As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.’

É conversa fiada dizer que o uso de algemas é arbitrário; que para seu emprego necessário se faz regulamentá-lo. O policial deve resguardar sua integridade física e a do preso. Mas policial não é babá de preso. E nem o preso traz gravada em sua testa inscrição revelando sua personalidade.

O comportamento humano nos reserva surpresas. Não raro é ver delinqüentes darem cabo às próprias vidas quando presos, muita vez por pacto com comparsas, para não pôr em risco o empreendimento criminoso. Freqüentemente se tem notícia de que réus, inconformados com o veredicto, perdem o controle emocional, em pleno salão do tribunal do júri, guarnecido por muitos policiais, e partem para agredir promotores, testemunhas e até juízes. Não muito invulgar também é pessoas supostamente honestas, quando apanhadas delinqüindo, atentarem contra as próprias vidas por pressão psicológica sobre si mesmas.

Para ilustrar esta última hipótese, voltemos ao dia 30 de maio do ano em curso. Naquele dia, por falta de diligência dos colegas que o prenderam, o tenente Fernando Neves, da PM de São Paulo, se matou ao ser preso, acusado de pedofilia. Fosse ele algemado, não atentaria – naquele momento – contra a própria vida. O Estado tem interesse na preservação da integridade física do preso não só por sentimento altruístico. No caso do tenente Fernando Neves, com sua morte, muitos crimes ficaram sem elucidação.

Dignidade imaculada

Portanto, a prudência recomenda que o policial se valha de todos os meios ao seu alcance para preservar a integridade física do preso, das pessoas que, por qualquer circunstância, possam sofrer reflexos danosos em suas integridades físicas decorrentes da prisão, como também para preservar sua própria integridade física e prevenir responsabilidade no exercício de suas funções. E o meio de que até então dispõe o policial para, nesse particular, desempenhar sua atividade, com a eficácia esperada, são as algemas, que, até que se apresente outro instrumento suficientemente eficiente para os fins desejados, devem continuar sendo utilizadas. Não há que se esperar é que o policial mantenha e conduza o preso ‘de mãos dadas’.

E, entendemos nós, mais recursos deveriam ser postos à disposição do policial para o cumprimento do múnus que lhe cabe. As vidas de custodiados do Estado podem ser alvos de atentados por terceiros interessados em seus silêncios. Interessante, pois, seria que o poder público, para proteger as vidas desses presos, fornecesse também, sempre, coletes à prova de balas. Antecipamo-nos: é utópica tal pretensão. Temos que nos contentar com as raríssimas oportunidades em que isso ocorre, o que é compreensível, já que o ordinário aqui neste país é sonegar essa proteção ao policial no confronto com marginais.

Assim, por tudo quanto aqui exposto, não vislumbramos motivos justos para o esperneio do sr. Daniel Dantas em relação ao emprego de algemas quando de sua prisão.

O sr. Daniel Dantas é realmente um fenômeno. Sua prisão com o emprego de algemas foi um vilipêndio à sua imaculada dignidade (acreditamos que mesmo sem o emprego das algemas o resultado seria o mesmo). Tão perversa que feriu os brios do Supremo Tribunal Federal, nossa mais alta Corte de Justiça. Ao longo de nossa história testemunhamos prisões de pessoas ‘importantes’ nos mesmos moldes em que foi ele preso, e não se ouviu esse clamor. Por economia, citaremos só o dr. Paulo Salim Maluf (deputado federal, ex-prefeito e ex-governador, grande empresário, de família tradicional de nossa mais importante metrópole – São Paulo), preso ‘n’ vezes.

Súmula imposta goela abaixo

Sua, do sr. Daniel Dantas, única, ao que se sabe, prisão, bem fundamentada, ressalte-se – e por isso se valeram das algemas para contestá-la – não deixa de causar desesperadas reações. Parece que o emprego das algemas foi mais desconfortável para o Supremo do que para o próprio. O colendo Tribunal não deu margens a polêmicas e discussões no seio da sociedade brasileira.

Incontinenti – aproveitando a deixa do julgamento de um processo no dia 07 de agosto do corrente ano, em que os ministros do STF, seguindo o voto do ministro relator, Marco Aurélio Mello, decidiram anular o julgamento de um réu por entenderem que houve abuso no uso de algemas pelo fato de o condenado por homicídio ter permanecido algemado durante toda a sessão de julgamento no tribunal do júri do município de Laranjal Paulista/SP –, os ministros do STF decidiram adotar o entendimento de que ‘Só se usa algema em caso de necessidade, possibilidade de fuga ou agressão’ (ministro Gilmar Mendes). Por sugestão do ministro Marco Aurélio Mello, deveriam ser enviadas cópias da decisão para o ministro Tarso Genro (Justiça) e os secretários estaduais de Justiça para fixar a ‘tese de excepcionalidade’ do uso de algemas.

Pois é; vai ser criada uma conveniente jurisprudência. Já declarou a egrégia Corte, pela pessoa do seu ilustre presidente, em seu nome e, presume-se, em nome:de seus pares: ‘A súmula vinculante já está aprovada. Há consenso básico, o que podemos ter é alguma discussão sobre aspectos.’

Por tudo quanto aqui expusemos, claro é que discordamos do entendimento do ministro Marco Aurélio Mello no julgamento do processo retro mencionado e desde já manifestamos nossa repulsa, nossa indignação pelo conteúdo que será esposado na súmula a ser imposta goela abaixo do jurisdicionado brasileiro, muito especialmente pelo modo não convencional de sua elaboração.

Comedir os constrangimentos

Voltamos a repetir: as algemas são o meio próprio de que se vale o policial para, no particular da prisão, cumprir sua função com a responsabilidade que o caso requer.

O episódio Daniel Dantas teve seu ponto positivo. Fez vir à tona outra importantíssima utilidade das algemas. É o Brasil um país que clama por meios que contribuam para a diminuição da criminalidade. O desconforto, o constrangimento causado ao sr. Daniel Dantas pelo uso das algemas, comprova que elas se prestam a tal finalidade, ou seja, são um desestímulo ao cometimento de crimes.

Não para o cometimento de crimes famélicos, cujos autores já vivem na indignidade e, pois, o emprego ou não de algemas em nada afetará a imagem deles perante nossa sociedade. Mas principalmente para os criminosos ‘de colarinho branco’, cuja classe tem aumentado nos últimos anos em progressão geométrica, que vêem nas algemas uma mácula indelével à imagem que ostentam perante a ‘alta sociedade brasileira’. Na grande maioria dos casos é o único constrangimento por que passam os criminosos que lesam o erário, que lesam uma nação inteirinha. E a nossa mais alta Corte de Justiça quer justamente desativar essa prestimosa causa de inibição do crescimento da criminalidade. Haja dinheiro nos cofres públicos…

Os figurões – ministros, políticos, juízes, advogados, altos empresários do tipo Daniel Dantas etc. – que se insurgem contra o uso de algemas, antes de fazerem as ‘merdas’ deveriam comedir os constrangimentos por que passarão e farão passar seus familiares e amigos. Estarão eles antevendo suas prisões?

Verdadeiras execrações públicas

No episódio protagonizado pelo sr. Daniel Dantas, percebemos que ele não tem consciência do que representa, do quão valioso é. E, por esta razão, em vez de protestar por ter sido algemado, deveria, sim, reclamar o direito que tinha de ser protegido por colete à prova de balas.

O sr. Daniel Dantas, à vista de toda comoção causada por sua prisão, é, certamente, um tesouro valioso. É um arquivo vivo de valor inestimável. É ele, pelo visto, detentor do conhecimento de fatos marcantes da história moderna do Brasil. Sim, história, sim! É parte promíscua, mas é história! Toda nação, infelizmente, carrega essa mácula. A revelação do que ele guarda consigo não será do agrado de muita gente. Ele deve se conscientizar do seu valor. Doravante, não deve se preocupar com algemas, mas com colete à prova de balas. O seu silêncio, e de outros tantos detentores de dossiês, é interessante para muitos. O silêncio ‘inquestionável’ mais ainda. Ele deve se lembrar que quando da morte de seu conterrâneo ACM, pouca comoção e muito suspiro de alívio se notou no meio político nacional.

Certeza se tem – pois ele repetidas vezes declarou, até no plenário do Senado – de que o falecido senador Antônio Carlos Magalhães possuía um relevante dossiê sobre a promiscuidade política deste país. Não se sabe até agora para quem ele deixou esse legado. Pelo visto, o acervo do sr. Daniel Dantas é mais abrangente. A certeza de sua absolvição em eventual processo judicial apreciado pela mais alta Corte do Brasil revela isso. Um dos primeiros aprendizados do acadêmico de Direito é a máxima de que ‘da cabeça de juiz e bunda de neném ninguém sabe o que e quando sai’. Pois é; o sr. Daniel Dantas sabe o que e quando sai da cabeça de juiz.

Vamos e venhamos. Da mesma forma que inferimos que o uso de algemas é um imperativo legal para a proteção da integridade física do preso, também entendemos, com amparo no mesmo art. 5º, inciso XLIX, da C.F., que a prisão, no resguardo da integridade moral do preso, deve se revestir da mais rigorosa discrição. Não é o que se tem visto neste país, e que não é de hoje. Temos testemunhado verdadeiras execrações públicas. Mas esses constrangimentos não são consectários do emprego das algemas. São fruto de ilegais e, consequentemente, irresponsáveis exposições do preso na mídia.

Exposição do preso é deplorável e ilegal

Ultimamente temos assistido, com mais freqüência do que em qualquer outra época, a prisões com a presença da imprensa previamente convocada para acompanhar a ação policial, o que não ocorre só com pessoas de renome. Trata-se de comportamento deplorável, tanto pela exposição da integridade moral dos presos, como, e principalmente, pela ilegalidade de que o fato se reveste. É uma irresponsabilidade – com muita propriedade apelidada de ‘pirotecnia’ – que tem como escopo mesquinho, com prejuízo moral para o preso e desrespeito à legislação penal brasileira, a promoção de policiais que não sabem se despir da vaidade para exercerem suas nobres funções.

Não conseguimos ver dificuldades para que as prisões se revistam da recomendada discrição. A polícia é devidamente instruída para efetuar uma prisão sem estardalhaços. Quando de um incêndio, os bombeiros sabem isolar o foco, evitando, assim, a aproximação de curiosos. Por que quando da prisão de um indivíduo em sua residência a polícia, precavendo-se de um eventual vazamento da ação ou da chegada da mídia ao local por seus próprios méritos, não isola o imóvel, ou mesmo o quarteirão, evitando a aproximação da imprensa e, consequentemente, a exposição do ainda suspeito?

Outrossim, não se sabe os rumos que uma diligência policial pode tomar. Pode muito bem acabar em tiroteio. A convocação da imprensa para acompanhar diligências policiais, ou mesmo a permissão para que ela acompanhe a ação – ainda que não chamada para tanto – é temerária, é atentatória contra a vida dos profissionais de imprensa. É crime configurado no Capítulo III – Da Periclitação da Vida e da Saúde, art. 132, do Código Penal brasileiro, que assim dispõe: ‘Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente.’ Impõem-se, pois, que se faça cumprir a lei.

Concluímos: o emprego de algemas é legal e imperativo – a excepcionalidade é o seu não emprego – e cumpre as importantes finalidades de preservar a integridade física das pessoas envolvidas na prisão e de conter o aumento da criminalidade; e a exposição do preso na mídia é conduta deplorável e ilegal.

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Advogado, Salvador, BA