Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Algumas informações e transformações do ‘grampo’

Um pequeno antílope (Madoqua guenthery), ao ouvir certos cantos do pássaro ‘vá-embora-barriga-branca’ (Corythaixoides leucogaster), faz com que aumente sua probabilidade de correr buscando abrigo, parar de pastar, virar a cabeça e vigiar ao redor. Tal antílope, sob o risco de ser vítima de algum predador, mesmo na ausência de habilidades sociais complexas ou de comunicação equivalente, parece ter desenvolvido escuta interceptativa (eavesdropping) de outra espécie. Em inglês, o significado da expressão eavesdropping corresponde, em uso atual, ao da expressão ‘grampo’ em português. [Citação referente a conteúdo traduzido (tradução livre) de Amanda J. Lea, June P. Barrera, Lauren M. Tom and Daniel T. Blumstein. ‘Heterospecific Eavesdropping in a Nonsocial Species’, Behavioral Ecology 19 (5) (2008): 1041-1046]

Investigar implica buscar ativamente conhecer fatos específicos, vis-à-vis as respectivas normas legais que os tornam incompatíveis com a vida social sob a égide do Estado Democrático de Direito.

Investigar, em tal acepção do termo (e investigar tem alguns outros significados, inclusive nas ciências…), enfim, é determinar a autoria e a materialidade de crimes. Ou seja, determinar quem são os criminosos, como, quando e onde fizeram o que. Isso virou um tema de grande destaque no Brasil de 2008, quer seja pelos perfis dos supostos criminosos assim identificados, ou pelos tipos de crimes por eles cometidos (geralmente de grande potencial de dano ao Estado e sua nação) e métodos (o ‘como’), geralmente bastante sofisticados, genericamente chamados modus operandi. A determinação da materialidade e autoria de delitos clássicos (a exemplo, os milhares ou mesmo milhões de pequenos furtos tradicionalmente cometidos pela humanidade), desvios de conduta de ‘pequenos criminosos’ que podem até ser apontados jocosa e classicamente pela comunidade como ‘ladrões de galinha’, não produzem os escândalos que foram produzidos no Brasil de 2008. A criminalidade ‘escandalosa’ do século 21, aqui e alhures, é aquela que enverga o proverbial ‘colarinho branco’.

Novos tipos e modalidades

E tudo isso tem muita relação com uma palavra escrita e falada repetidas vezes pela mídia: ‘grampo’. Ele que hoje é apenas uma metáfora anacrônica, utilizada para materializar em algo – ‘um grampo’ – o antigo processo utilizado fisicamente sobre uma linha telefônica (quando ela ainda era exclusivamente um fio metálico esticado entre postes) de onde eram extraídos diálogos contendo ‘narrativas de fatos’ (fossem eles verdadeiros ou não, quiçá até mesmo ‘fabricados’ pelo ‘grampeador’…). Mas o grampo é um estigma doloroso para a nação. Em outras épocas, ele teria servido sistematicamente como instrumento de violação de direitos e garantias individuais, hoje diligentemente fiscalizados e protegidos em norma, tutelados não só no plano legal, mas também na consciência moral coletiva, segundo um ‘sentimento nacional’ comum, cuja violação é severamente condenada e punida pelos institutos do direito penal da nação moderna e democrática que é o Brasil de 2008 (quase 2009…).

O processo sob o qual isso ainda pode acontecer, já agora apenas em nome de relevantes interesses da nação e sob estrito disciplinamento legal, mudou muito. É regido por norma própria, inclusive. Mas a sociedade brasileira continua, sabendo ou não, referindo o antigo processo – o do ‘grampo’ – como se ele ainda assim existisse. Ledo engano… Ele é tão diferente hoje, em qualidade, que sua ‘quantidade de alcance’ leva a novas reflexões, inclusive se hoje é, como ontem, algo acessório, ou mesmo se passou a ser o que existe de mais essencial na própria investigação policial moderna…

A grande questão é que os saltos tecnológicos havidos nas últimas décadas proporcionaram uma mudança tal na qualidade do que se pode produzir de informação sobre a interceptação de um diálogo que o conceito metafórico do ‘antigo grampo’ se perdeu… É como imaginar a ‘navegação’, no marco conceitual do Oceano Atlântico de 1509, século 16, cotejado com o da ‘navegação’ na sua acepção aplicada ao contexto cibernético da rede mundial de computadores (web) do ano de 2009 do século 21. Foram cinco séculos para esse câmbio de acepção do ‘navegar’, mas talvez baste hoje cinco meses ou até mesmo apenas cinco semanas para surgirem novos tipos e modalidades de ‘grampo’…

Avanços significativos

A interceptação do diálogo nas telecomunicações (na telemática, mais precisamente, de acordo com a tecnologia atual), em tempos de rede mundial de computadores (world wide web) inclui hoje equipamentos de posicionamento por satélite; protocolos de transmissão digital de imagens, voz e dados; sistemas computacionais de determinação da identificação humana (biometria facial, ocular e de voz, entre outras); e análise criminal (estatística computacional aliada a aplicações diversas da tecnologia da informação, incluindo sistemas de informação geográfica como o de ‘mapeamento criminal’).

A Análise Criminal (AC) com sua Análise de Vínculos (AV) e a moderníssima Biometria de Voz (BV) talvez componham a trilogia do que exista de mais emblemático, hoje, da verdadeira revolução tecnológica por que passou o antigo conceito de ‘grampo’ e a investigação criminal moderna em prol da descoberta de autoria e materialidade de delitos de alta complexidade.

As atividades de investigação criminal, englobando AC/AV/BV, pela sua complexidade e precisos resultados atingíveis em ‘tempo real’, envolvem equipes multidisciplinares que incluem analistas de sistemas, especialistas em bancos de dados e investigadores policiais com renomado conhecimento da investigação clássica, com eles utilizando tudo isso em constante adaptação e em um ‘tempo tecnológico’ que a delinqüência não consegue conceber e superar (a não ser pela cooptação, formal ou informal, do próprio Estado na figura de seus prepostos). Os escândalos de 2008 ficam por conta desses significativos avanços em investigações realizadas sobre uma criminalidade hoje transnacional, com articulação no Brasil, inclusive.

‘Descoberta do conhecimento’

Desde os aperfeiçoamentos nas técnicas e continentes investigativos os mais básicos (bases de dados hoje ainda fazem antigas funções, mas já agora enquanto ‘cartórios informatizados’), até a aplicação de avançados softwares de ‘análise visual da informação’, os atuais investigadores criminais têm logrado resolver casos que seriam absolutamente incompreensíveis e insolúveis com a utilização dos instrumentos da investigação clássica disponíveis até poucos anos atrás. Isso é devido ao complexo mundo atual da ‘Sociedade da Informação’ e implica a existência de milhares ou mesmo milhões de variáveis envolvidas na consecução dos ilícitos da atualidade. E é exatamente a utilização da alta tecnologia, como aliada da segurança pública, que tem possibilitado controlar atividades complexas e sofisticadas de um aparentemente poderoso crime organizado, inicialmente, com o uso de softwares de AC/AV criados no início da década de 1990, mas já hoje considerados indispensáveis e triviais por milhares de organizações voltadas para a investigação criminal moderna.

Não é por razão muito distinta das apresentadas que a sociedade contemporânea se vê hoje ‘pacificamente invadida’ pela iniciativa privada, na medida em que conhecimentos de cunho pessoal, antes difíceis ou mesmo impossíveis de obter, são declinados e questionados em rotineiras consultas de telemarketing… A matéria-prima do conhecimento utilizado na investigação criminal, muitas vezes, pode já estar livremente em mãos do ‘segundo setor’ (setor privado), antes mesmo das mãos dos agentes públicos responsabilizáveis criminalmente pela busca não-autorizada daquele mesmo conhecimento no interesse do Estado, ou ‘primeiro setor’…

Assim é que, com o aumento significativo do volume de dados a serem analisados (por qualquer setor da sociedade), muitas vezes em função do crescente número de bases de dados existentes, situadas freqüentemente em localidades físicas distintas da ‘comunidade global’, ficam evidentes algumas situações que ainda estão tendo de ser encaminhadas no processo de ‘descoberta do conhecimento’ do século 21 (tanto de interesse público quanto privado): (i) informações armazenadas segundo diferentes tecnologias de gestão de bases de dados; (ii) conteúdos oriundos de fontes de informação diversificadas; (iii) duplicação de dados contidos em bases distintas, caso de nomes, telefones e placas de veículos; e, entre outras variáveis ainda; (iv) diversidade de sistemas de informação, acessíveis em diferentes formatos, gerando, por exemplo, demora e dificuldade de obtenção da informação buscada.

Vulnerabilidade à transparência

Função de uma conjuntura delitiva dinâmica na sua articulação e sempre rápida nas respectivas ações, novos softwares estão sendo desenvolvidos em resposta a necessidades comuns de investigadores criminais de diversas partes do mundo, justamente para atender demandas tático-operacionais críticas para o sucesso na resolução de casos novos e cada vez mais complexos. Agora, por exemplo, já é possível, com alguns instrumentos tecnológicos ‘de ponta’, acessar e analisar prontamente informações localizadas em qualquer lugar do mundo, independente da tecnologia da base específica utilizada.

Os aspectos legais de tais operações, por óbvio, devem ser tratados nas instâncias governamentais correspondentes, o que é cada vez mais freqüente tema de controvérsia e calorosa discussão político-ideológica e partidária. A futurologia do ‘Big Brother’, entidade ficcional que a todos conhece ‘no fundo da alma’, segundo a clássica obra de Orwell escrita em 1949, mas nomeada em seu título no distante 1984, passou a ser tema da trivialidade televisiva… O que se discute agora, não mais no plano literário ficcional, mas sim, em instituições tão reais como o Parlamento Brasileiro e suas Comissões Parlamentares de Inquérito, é o ordenamento de uma sociedade tão vulnerável à transparência, com a investigação criminal sendo parte disso, inclusive. Transparência, expressão tão importante quanto aludida por Mikhail Gorbachev, último secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, ao utilizá-la recorrentemente em seu discurso político – glasnost – em versão ocidentalizada – ou гла́сность – conforme original em russo, grafada em alfabeto cirílico.

Escolhas corretas

E transparência, em segurança pública, é cada vez mais um fato inelutável. Essa transparência, temida por muitos, começa na identificação humana, para determinar, ‘entre alguns humanos’, os que insistem em delinqüir contra a maioria do restante da humanidade. A possibilidade cada vez mais precisa da identificação humana, desde a papiloscopia (Alphonse Bertillon, França, 1853-1914) e fotografia (Louis-Jacques-Mandé Daguerre, França, 1787-1851), ainda na primeira metade do século 19, tem hoje, mais de século e meio depois, na Biometria de Voz, o seu ‘Estado da Arte’. Ela, que é pouco posterior ao uso de fragmentos genéticos ou DNA (Allec Jeffreys, Reino Unido, 1950), técnica que mal começa a ser definitivamente entendida e incorporada ao ‘arsenal’ da moderna criminologia em 1984. Apenas para ilustrar a importância desse tipo de instrumento, o traficante colombiano Juan Carlos Ramirez Abadía, preso em São Paulo em agosto de 2008, somente pôde ser identificado pela voz, vez que havia se submetido a diversas cirurgias plásticas, mudando em muito suas características faciais originais.

Para alguns, entretanto, tudo isso parece evocar um ‘Deus nos acuda’. Talvez sim, mas apenas para alguns… Como diria o dirigente da Microsoft, Bill Gates: ‘A primeira regra de qualquer tecnologia utilizada em um negócio é a de que a automação aplicada a uma operação eficiente irá incrementar a eficiência. A segunda regra é a de que a automação aplicada a uma operação ineficiente irá incrementar a ineficiência.’ Bom para uns, mau para outros (que fazer…). Mas reconhecer entre uma coisa e outra, fazendo escolhas corretas, talvez possa ser ótimo para a nação brasileira e suas instituições policiais.

[Especial agradecimento à empresa ‘Tempo Real Tecnologias de Informação’ por disponibilizar seu portfólio descritivo e respectivos conteúdos para consulta, mais especificamente os de Análise de Vínculos (AV) e Biometria de Voz (BV).]

******

Coordenador para Assuntos de Segurança Pública do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Defesa, Segurança e Ordem Pública (Nedop) do Centro Universitário do Distrito Federal; coordenador dos Cursos de Especialização (MBA) em Gestão da Segurança Pública e Privada e Gestão da Segurança Pública com foco em Inteligência do Instituto de Cooperação e Assistência Técnica (ICAT) do UniDF; e consultor-sênior do Centro de Treinamento em Segurança Pública para a América Latina e Caribe da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça