É fato: o abuso não acabou. Ele segue acontecendo. Desde sexta-feira [4/4], no entanto, à revelia do que diz a lei. Nessa data, o Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) publicou a resolução 163, que considera abusiva a publicidade dirigida à criança. No mesmo dia, o Instituto Alana soltou uma newsletter anunciando o que consideramos uma “conquista histórica”. “Acabou o abuso!” foi seu título.
Celebramos o fim do direcionamento da comunicação mercadológica à criança, que não tem discernimento para entender que aquilo tem apelo comercial. Celebramos a mudança de paradigma, que coloca o Brasil entre os países mais desenvolvidos do mundo quando o assunto é a proteção da criança contra os apelos do consumismo. Celebramos o ápice de uma conquista democrática, que vem sendo construída há anos e que hoje mobiliza mães, pais, acadêmicos, educadores, especialistas, alguns publicitários e as próprias empresas – já temos alguns casos de empresas que se comprometeram publicamente a não direcionar nenhuma mensagem de cunho mercadológico a crianças.
Em artigo publicado neste Observatório, a newsletter do Alana foi alvo de ira – fomos acusados de fazer mau jornalismo, ou um “trabalho de spin doctor, típico das piores assessorias de imprensa”.
Voltando ao começo desse texto: de fato, erramos no título da nossa newsletter. O abuso não acabou. Erramos, no entanto, não por fazer um trabalho de “spin doctor”, mas por acreditar que uma resolução que tem poder vinculante e que corrobora algo já previsto no Código de Defesa do Consumidor seria respeitada pelo mercado. No entanto, há, no Brasil, algo mais chavão do que normas que não são cumpridas?
Voltando ao texto das colegas comunicadoras neste Observatório: quantas mensagens nas entrelinhas, quantas tentativas de desconstruir um discurso e de desqualificar um processo democrático podem estar contidas em um só texto? Destaco alguns desses recursos utilizados no criativo artigo dividido em três partes intitulado “A responsabilidade de escrever sobre responsabilidade”:
** O Conanda, autor da resolução 163, não é um “órgão da Presidência da República”, mas um colegiado composto de forma paritária por representantes da sociedade civil organizada e de ministérios do governo federal. Ou seja, como todo conselho, reúne entidades e especialistas no tema – no caso, a promoção e a proteção dos direitos da criança – que constroem, democraticamente, a pauta de suas assembleias. Reduzi-lo a “um órgão da Presidência” – ainda que ele seja vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República – é uma tentativa de esvaziar o processo democrático que sustenta a aprovação dessa resolução.
** Não me parece demérito ter causado, em uma das autoras, “o ímpeto de compartilhar o mais rápido possível o texto recebido”. Esse era o objetivo da newsletter – comunicação que mobiliza e gera ação: a equipe toda agradece o elogio.
** Sigo detalhando, para não continuar sendo acusada de “oferecer um discurso redutor contra a publicidade”. Vamos lá: a publicidade dirigida às crianças está, sim, proibida. É ilegal. Essa ilegalidade vem da lei 8.078 de 1990, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC). Em seu artigo 37, ele proíbe a publicidade abusiva, ou seja, aquela que atenta contra valores sociais. Ele diz: “É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança”.
E como a Resolução 163 entra nessa história? Ela define que é abusiva a prática do direcionamento de publicidade à criança. Ela corrobora o que muitas pesquisas, que embasam o nosso trabalho no Alana, já nos mostraram: que a criança não tem ferramentas para entender que se trata de mensagem com apelo comercial. Que ela não tem essa maturidade. E que, portanto, toda publicidade direcionada diretamente a ela estaria se aproveitando de sua deficiência de julgamento e inexperiência.
E mais: essa abusividade atende à vontade da própria população brasileira, em especial dos pais – 79% deles concordam, por exemplo, que a publicidade de alimentos não saudáveis dirigida à criança prejudica os hábitos alimentares de seus filhos (Datafolha, 2011).
É uma pena que o caminho escolhido pelo mercado seja o de desqualificar a força da resolução. A nossa assessoria de imprensa, que afortunadamente não faz o trabalho “típico das piores” apontado na trilogia, tem se esforçado incansavelmente há anos – e agora em especial – para atender a todos os veículos e jornalistas que procuram o Alana para entender o que defendemos. Não nos furtamos a dar uma entrevista, a enviar material de pesquisa, a compartilhar nossas fontes. Atendemos jornalistas no fechamento, à noite, na hora do almoço, aos finais de semana. A equipe do Projeto “Criança e Consumo” faz um esforço extremo para contribuir com a qualidade do debate, seja esclarecendo o que embasa legalmente nosso posicionamento, seja contribuindo para construir a base teórica que nos dá suporte. Definitivamente, não vendemos nem gato, nem lebre.
** O tema e o Congresso Nacional. Voltemos ao texto: “(…) o Alana já sabe que qualquer regulação legal sobre o tema tem de passar pelo Congresso Nacional – e, possivelmente, será derrotada”. O que, caros colegas comunicadores, está implícito nessa mensagem? De onde vem esse “possivelmente será derrotada”? Pode ser que esse “palpite” venha do fato de que há 12 anos tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que propõe a regulamentação da publicidade dirigida às crianças. Há 12 anos, a sociedade civil organizada, mães, pais, educadores e todos os interessados no tema vêm acompanhando as idas e vindas do texto, que patina, patina, patina e até hoje não entrou na pauta de votação. Aliás, uma das pessoas que comemoraram a resolução do Conanda, inclusive, foi o autor desse projeto de lei, o Deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR). Citado na newsletter do Alana, ele disse: “o Conanda valeu por todo o Congresso Nacional, que não regulamentou a matéria da publicidade infantil”.
** A nota pública divulgada por entidades do mercado publicitário e de mídia, “rapidamente e educadamente”, segundo uma das autoras da trilogia, não entra em nenhum mérito. Uma pena. Mas a autora ressalta que foram nove associações que a assinaram. N-O-V-E. E que elas “não se abalaram com o abuso e a irresponsabilidade depositadas na notícia”. Sem usar de nenhum recurso de comunicação ou insinuar interesses, farei apenas listar essas nove associações: Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap), Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Associação Nacional de Jornais (ANJ), Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel), Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner) e Central de Outdoor (!). Ok, não resisti a esse pequeno recurso de comunicação!
** A falta de dados mais aprofundados sobre os motivos que fazem uma das autoras afirmar que, na relação criança e consumo, o foco não deveria estar na publicidade e sim no “produto” não me dá subsídios suficientes para rebatê-la. Quando foi que a publicidade saiu da relação entre um indivíduo e seus hábitos de consumo? Do jeito que foi escrita, infelizmente, fica parecendo apenas uma frase de efeito inserida, mais uma vez, para confundir.
** Por fim, gostaria de desejar mais sorte do que a nossa à autora que “sonha com o dia em que essa discussão se desloque dos argumentos utilizados pela linguagem publicitária e se dirija aos ingredientes, entre outras coisas, utilizados nos produtos direcionados às crianças”. Desejo que ela, caso decida enfrentar a indústria e apoiar a tramitação de um projeto de lei no Congresso Nacional, não veja a pauta sendo jogada de um lado para o outro durante 12 anos. E nem ouça que será “possivelmente derrotada”.
Ah, vale ressaltar: seguimos abertos ao debate qualificado e ao diálogo com toda a sociedade. Como sempre fizemos, inclusive – e sem enganar pais, mães, apoiadores ou leitores, como o texto insinua. O nosso objetivo, assim como o de muitas entidades, institutos, acadêmicos, cidadãos etc, é o de promover os direitos das crianças e de lutar para que elas sejam respeitadas e honradas. O abuso, seguindo o que diz a legislação atual, acabou sim. Cabe agora a todos nós agirmos de acordo com a lei.
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Carolina Pasquali é coordenadora de comunicação do Instituto Alana