Reinaldo Azevedo, em Veja, elogia Voltaire e descasca Rousseau, em ‘Que falta faz um Voltaire’.
Voltaire, na avaliação do comentarista-polemista, seria o mercado, o capitalismo, a ousadia, o individualismo, a liberdade; Rosseau, o socialismo, o coletivismo, a barbárie. Maniqueísmo mecanicista puro.
Como o socialismo, segundo ele, já fora, historicamente, por conta da derrocada da extinta União Soviética, detonado com a queda do Muro de Berlim, em 1989, restaria o elogio do capitalismo voltaireano.
E tome porradas azevedianas, a torto e a direito, nos socialistas, comunistas, esquerdistas. A virtude, segundo ele, estaria no mercado.
Cabeça mecanicista, Azevedo está ainda no século 19, raciocinando erroneamente, como diria seu contemporâneo novencentista Malthus. Os ideólogos neoliberais, como Azevedo, não raciocinam com o olho do capital, apesar de subordinados a ele em corpo e alma. Não entendem, portanto, o capitalismo. Não vêem o movimento contraditório, dialético, do mesmo, em seu processo de reprodução. Não enxergam que a contradição busca solução na negação.
Basta ser político
Não foi à toa que a mente dialética, capitalista, de Malthus, recusou o mercado, e mais tarde, também, o seu maior discípulo, Keynes, que mandou os neoclássicos neoliberais, tipo Alfred Marshall e seu marginalismo abstrato, às favas.
O que disse Malthus, que o demonizou pela vida eterna, mesmo sendo um pensador adepto do movimento do capital, simplesmente, por ter falado a cristalina verdade? Que o capitalismo, por ser eficiente demais, requer o seu contrário, a ineficiência.
Não poderia jamais ter dito isso. Teria que prevalecer o pensamento mecanicista de que a eficiência do capital tem que ser, também, a eficiência do Estado, como se não houvesse a relação dual entre a eficiência e a ineficiência como partes de um só movimento, no processo de reprodução ampliada do capital.
Maílson da Nóbrega, neoliberal de carteirinha, provavelmente um dos gurus, na economia, do polemista de Veja, considera que o governo tem que se comportar como dona-de-casa, gastar apenas o que arrecada. Lula, também mecanicista, fala isso, mas, não age conforme. Malthus reprovaria Maílson-Azevedo, em matéria de conhecimento do capitalismo em sua essência, e aprovaria Lula por concluir que não é preciso ser economista-comentarista para comandar a economia. Basta ser político.
Capital constante e variável
Sob o impacto da ciência e da tecnologia, diz Malthus: as mercadorias, produzidas cada vez mais eficientemente, em quantidade superior à demanda existente para consumi-las, teriam seus preços deflacionados constantemente, jogando, conseqüentemente, a taxa de lucro no chão.
Por que? Porque não é verdade a afirmação de Jean Baptista Say, pai dos liberais e avô dos neoliberais, como Azevedo, de que toda a oferta gera demanda correspondente, levando o capitalismo à eternidade do equilíbrio. Isso ocorreria, como ironizou Marx, se as mercadorias que vão ao mercado fossem vendidas sem lucro. Como o lucro é essencial…
O processo da formação do lucro impõe – parece que Azevedo não entendeu – a insuficiência relativa de consumo porque o empresário, quando investe, tira do processo de produção um valor superior ao que jogou nele. Do contrário, para que produzir? Melhor deixar dinheiro render nos juros.
Quando o empresário decide investir, diz Marx, joga na circulação C+V, mas retira dela, não apenas, C+V, mas, sim, C+V+S. De onde vem S? Não vem, concluiu. V, trabalho, produz valor superior ao que recebe em forma de salário, de forma que a totalidade do valor que embolsa é insuficiente para consumir a totalidade do valor que produz. Há um gap entre C (capital constante, máquinas, equipamentos e matérias primas) e V (capital variável).
Super-ineficiência
Se, historicamente, o capitalismo produz a insuficiência relativa de demanda global, como acreditar no mercado, se neste o capital variável não pode consumir o suficiente para reproduzir o capital constante, já que os assalariados precisam doar S (lucro), para que o capitalista se sinta recompensado em optar pela liquidez, para investir, em vez preferir os juros, para poupar?
Marx, que, na opinião de Reinaldo Azevedo, seria um bobo, gerando bobajadas que configurariam o marxismo, desmanchou a casa dos neoliberais construída pelo esquizofrenismo equilibrista de Jean Baptiste Say.
O equilibrismo é a versão da falsa igualdade vendida pelos neoliberais e liberais em geral, como fator gerado pelo sistema no plano da equidade social. Não é a esquerda que prega a igualdade, mas a direita, mesmo, à moda dela. Negam os neoliberais, portanto, a natureza, que se desenvolve desequilibradamente, sendo o capital, fruto dela, parte de sua totalidade em transformação, o próprio desequilíbrio ambulante. A presunção dos neoliberais, como Azevedo, é a de que o capital seja a totalidade e não parte dela.
Como fazer com que o brilhante articulista de Veja entenda que o mercado é a morte do capital em sua fase ultrafinanceira oligopolística?
Morreria deflacionariamente de forma muito mais traumática do que ocorreu em 1929. Pensar que se pode tirar algum proveito da equilibrismo deflacionário, disse, Keynes, ‘é um erro eterno’ dos neoliberais. O sistema, graças à sua super-eficiência, impulsionada pelo desenvolvimento científico e tecnológico, que o leva à sobreacumulação de capital, precisa da super-ineficiência do Estado.
Tensão entre oferta e demanda
Afinal, o excesso de produção, determinado pelo avanço científico e tecnológico, desbalança, historicamente, produção e consumo. Aquele deixa de realizar-se neste, destruindo o capital.
Qual seria a solução? A inversão da deflação: a inflação, ‘o elixir’, segundo Keynes, desde, evidentemente, que o governo tenha suficiente capacidade de endividar-se. Com uma mão joga dinheiro na circulação, para puxar a produção; com a outra lança títulos, para enxugar parte da liquidez monetária, para evitar explosão inflacionária. A dívida cresce, dialeticamente, no lugar da inflação.
A solução, no entanto, virou problema. A prova é a derrocada do dólar. Ela sinaliza ponto final na capacidade de o governo norte-americano continuar fazendo o jogo monetário keynesiano que mantém desde a segunda guerra mundial. Reinaldo Azevedo não percebe que está segurando uma quimera quando se socorre de Fukuyama, autor de O fim da história, se a história continua e o fim dela mostra ser o seu começo.
Keynes, que, quando viu a Inglaterra perder o poder monetário, sob o padrão-ouro, pregou sua imediata desvalorização e a supressão daquele modelo monetário, considerando-o ‘relíquia bárbara’, teria que ser melhor lido por Reinaldo, se é que leu.
Não teve outra saída para o capitalismo: os gastos do governo precisaram produzir o fenômeno do aumento do consumo sem que houvesse aumento das forças produtivas, ou seja, da oferta de bens, para evitar repetição do processo deflacionário que levou à destruição do crash de 29.
A criação de uma escassez, por conta do aumento do consumo ineficiente governamental, via moeda estatal, geraria o que Malthus reclamou: uma tensão entre oferta e demanda, para elevar os preços e, conseqüentemente, os lucros.
As ‘não-mercadorias’
O mercado, sozinho, não faz isso. Pelo contrário, em vez de levar a uma tensão altista dos preços, cria uma tensão baixista. Prejuízo total.
O consumo dinamizado pelos gastos do governo sobe, mas a produção, não. Se se aumentam as forças produtivas sem que haja correspondência no consumo, os investimentos caem, o desemprego explode, os preços desabam. O capitalismo, quanto mais velho e problemático vai ficando, mais considera insuportável o pleno potencial das forças produtivas. Estas reclamam um novo molde para potencializar-se, enquanto o corpo carcomido do sistema não suportaria novos ventos e tempestades criativas. Morreria de deflação.
Quem iria consumir mais se o problema do sistema é insuficiência de consumo, como destacam Malthus e Keynes?
O governo tem que ser este consumidor essencial. Que mercadorias consumirá, caro Reynaldo? Vai estudar um pouco e deixe de lado essa arrogância esquizofrênica expressa nesse último artigo de Veja.
Como disse outro dia no Senado o senador Mão Santa, a propósito da posição dos católicos conservadores em relação às células-tronco, a ignorância é muito audaciosa.
Marx, o bobo, disse que o capitalismo desenvolveria ao máximo as forças produtivas, entraria em senilidade e passaria a desenvolver as forças destrutivas, na guerra, com uma moeda criada pelo Estado. O que produz a economia de guerra? ‘Não-mercadorias’, assim conceituadas por Lauro Campos, em A crise da ideologia keynesiana (Campus, 1980).
O estorvo do livre mercado
Os produtos bélicos e espaciais, estradas, pontes, viadutos, palácios, contratação de funcionários, desperdícios etc., são as não-mercadorias adquiridas com o dinheiro estatal. O governo joga dinheiro na circulação para comprar não-mercadorias e gera renda para manter o consumo das mercadorias, que não seriam consumidas se dependessem do livre mercado, defendido pelo nada bobo Azevedo.
Qual o capitalista que empregaria um ideólogo desses que prega a destruição do capital?
O que seria do capitalismo norte-americano, pergunta o prêmio Nobel Josef Stigliz, se a indústria de armas – não-mercadorias, isto é, não mercado – não estivesse faturando, até agora, 3 trilhões de dólares, expresso em gastos do governo, na invasão imperialista do Iraque?
A economia de guerra é a destruição que é computada como aumento do PIB mundial, deixando consciências, como a de Azevedo, tranqüilas em sua capacidade de perecer sob os argumentos que tentam homogeneizar a realidade fundamentalmente heterogênea.
Se o mundo estivesse ainda no equilibrismo orçamentário pregado pelos neoliberais, cultuados pelo articulista de Veja, certamente os Estados Unidos não estariam onde chegaram, como maior potência do mundo. Como não caíram no conto dos neoliberais, são o que são. O padrão-monetário equilibrista do século 19, reinado do livre mercado, apoiado nas reservas de ouro, era um estorvo para a reprodução do capital.
Piada completa
Com a moeda estatal inconversível depois da crise de 1929, a burguesia joga o padrão-ouro, que condenava na monarquia, para o espaço, e toma conta do Estado. Se o Estado se transforma em capital, para emitir sua própria moeda, para que existir reservas em ouro?
O Estado – Azevedo passa longe desse entendimento – é capital sob o capitalismo guerreiro, que garante o consumo sem aumentar a oferta, para manter a fantasia, que embala os Reinaldos Azevedos, de que o mercado existe.
Sem a ineficiência do governo, para gastar gerando déficits orçamentários, a eficiência do capital inexiste. É preciso dissipar, destacam, tanto Malthus, quanto Keynes. Dissipar, totalmente, insiste Keynes.
O modelo do padrão-ouro, no qual habita, espiritualmente, o católico Azevedo, era incompatível, pois limitava a capacidade do governo de gastar, de realizar a previsão malthusiana salvacionista do capital, fora do mercado. O genial Malthus não foi gênio por conta da sua teoria da população. Foi genial pelo que não pode ser dele divulgado.
Ele desnudou o sistema ao mostrar que a sua eficiência produtiva requer a ineficiência consumidora do Estado. O jogo do livre mercado é pouco, já que a demanda global dispõe de um valor insuficiente para comprar a oferta global – bombada pelo desenvolvimento científico e tecnológico, propulsor da produtividade, que derruba os preços –, gerando, conseqüentemente, insuficiência crônica de consumo.
Uma das chateações de Marx é essa de ter chegado tarde na compreensão do movimento do capital em relação a Malthus, que considerava a economia capitalista uma ciência lúgubre, triste. Afinal, diz ele, os que chegam tarde não podem usufruir do banquete do capital. Ficam na lama, mesmo.
Agora, vem o supra-sumo da inteligência de Veja e descasca o socialismo rousseauniano, para engrandecer o capitalismo iluminista-mercantilista voltaireano em seus primóridos no século 17.
O que estaria pensando o iluminista daquele tempo em que o sistema capitalista estava jovem e vigoroso, se vivesse hoje, quando o vetusto vive de crise em crise monetária, espalhando terror para todos os lados, mostrando seus limites e demonstrando que é um fato histórico e social, tendente a ser superado, historicamente, como todos os fatos que mudam diante da realidade?
Veria o iluminismo ou o escurismo?
A supremacia do mercado, como imagina existir o articulista de Veja, é uma piada completa. Ele se mostra tendente a voltar ao útero materno. Só Freud explica.
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Jornalista, Brasília, DF