Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Amadorismo ou terrorismo?

Ainda há o que apurar no caso da fraude do Enem. Surgem ao menos duas
hipóteses para explicar o ocorrido. Ou se trata do amadorismo de alguns
irresponsáveis que tentaram ‘ganhar um troco’, e se deram mal, ou se trata de
terrorismo político.


Na segunda hipótese, o objetivo teria sido pôr em xeque a credibilidade do
MEC, questionar e desqualificar os esforços educacionais do governo Lula e
atingir a imagem do ministro Fernando Haddad, potencial candidato do PT em
futuras eleições.


De fato, as declarações do presidente Lula veiculadas na imprensa indicam
algo mais do que mero furto: ‘Eu sinceramente não posso acreditar que no momento
que está vivendo o Brasil, alguém tivesse a intenção de roubar uma prova do Enem
e levar para a imprensa, porque antigamente se levava [as provas] para vender
aos cursinhos […]. A gente não pode afirmar a serviço de quem isso aconteceu.
Eu não sei quem é que se sente prejudicado pelo Enem’ (Correio
Braziliense
, 10/10).


Comemoração mais ou menos velada


Chama a atenção, por exemplo, a alegria malcontida do governador José Serra,
denunciada em charge de Fernando Brum, na revista IstoÉ desta semana (nº
2083), diante dos apuros que Fernando Haddad vem enfrentando há duas
semanas.



‘A fraude complicou a situação do sistema universitário que confiou no seu
funcionamento. Houve uma espécie de apagão.’ Estas são palavras de Serra
divulgadas na mesma edição da IstoÉ em que a fraude aparece como
decorrência necessária da proposta do MEC.


O mesmo raciocínio alimenta a opinião do secretário da Educação de São Paulo,
Paulo Renato Souza: ‘A prova passou a ter um valor econômico e social muito
importante, aumentando a tentação da fraude’ (Estado de S.Paulo, 2/10). E
a de Maria Helena Guimarães, ex-diretora do Inep na gestão de Paulo Renato,
quando ministro da Educação de FHC: ‘O risco e a complexidade de aplicar uma
prova assim não se devem tanto pelo tamanho e pela quantidade de estudantes
inscritos, mas pela natureza dela, que mudou. Isso exige uma dinâmica e uma
logística diferentes’ (Estado de S.Paulo, 02/10).


Seria a fraude fatalidade que atingiria o MEC mais cedo ou mais tarde? A
resposta encontra-se nas entrelinhas das citações anteriores. O problema
residiria na mudança de natureza do Enem, e essa mudança é vista com maus olhos
por eles, mas isso não o dizem. Como também não se referem ao valor político que
o Enem adquiriu e, certamente, aumentou a tentação da fraude…


Paulo Henrique Amorim, constatando esse valor político, conclui que o PSDB de
São Paulo conseguiu o que queria: um motivo para boicotar o
Enem
. Uma forma de marcar território.


Uma quadrilha, ou duas?


O crime cometido é o peculato. Os envolvidos procuraram proveito próprio,
abusando da confiança pública que neles se depositou no processo da impressão
das provas que iriam influenciar a vida de milhões de estudantes.


Os criminosos estavam cientes da importância do que tinham em suas mãos. Mas
causa estranheza o modo como se comportaram depois do furto de que se tornaram,
no mínimo, coniventes. Procuraram a mídia para divulgar o seu próprio crime,
exigindo dinheiro por esse ‘serviço’!


Felipe Pradella, o principal criminoso, na entrevista que concedeu a Ana
Aranha, na revista Época desta semana (nº 595), argumenta que, ao receber
de um certo Felipe Ribeiro o caderno de questões, concluiu rapidamente que se
tratava de terrível vazamento, de um escândalo educacional capaz de derrubar
ministério, e que a melhor forma de salvar os estudantes do grande desastre
seria ele próprio, com a ajuda de Gregory, o DJ, seu amigo, levar as questões do
Enem ao Estadão e à TV Record, solicitando a bagatela de uns 500 mil
reais.


Essa entrevista, ou demonstra que a quadrilha de trapalhões não tem a menor
noção da realidade – a conversa gravada pela reportagem do R7 confirma um discurso incoerente e alucinado –,
ou foram eles usados por alguém e são a parte visível, os criminosos
identificáveis, de um golpe concebido para obrigar o MEC a cancelar a prova
antes que ela se realizasse.


Se Pradella queria tanto ajudar, por que não procurou a polícia, ou mesmo o
MEC? Por que não tentou alertar os seus chefes na gráfica? Tais perguntas, no
entanto, perdem toda a razão de ser, se pensarmos que realmente a quadrilha é de
amadores, amadores que se consideram muito espertos, manipulados porém por uma
outra quadrilha, esta mais qualificada, cujo plano era pressionar o governo a
recuar em seus intentos político-educacionais.


Armando o circo


Chama a atenção também o surgimento súbito de estudantes revoltados contra a
situação. Estudantes comportadamente revoltados, carregando cartazes com
palavras de ordem como ‘A prova da incompetência’, ‘O jovem no Brasil não é
levado a sério’, ‘Nem Ordem Enem Progresso’, ‘Enem feito na pressa, com
problemas começa’, ‘Educação não é circo’. Acusam o MEC de não levá-los a sério.
Queixam-se do cancelamento da prova. Ora, o que desejavam eles? Que o MEC não
reagisse às evidências da fraude? E por que não se indignam contra os que se
apropriaram da prova, causando esta confusão?


Esses estudantes estão no Orkut. Sua comunidade nasceu no dia 1º de outubro e conta com um
pouco mais de mil membros. Reivindicam a melhoria do ensino brasileiro. São a
Nova Organização Voluntária Estudantil (NOVE), e se definem como apartidários e
pacifistas. Sua aparição serviu para que certa mídia ilustrasse a matéria, na
ausência de outras fotos [ver, neste Observatório, ‘O novíssimo movimento estudantil‘]. O que se vê nelas são
estudantes meio abestalhados, sem discurso e sem rumo.


Por outro lado, a maioria dos estudantes que foi prejudicada bem percebe que
o inconveniente não era desejado por ninguém, muito menos pelo MEC. O NOVE é um
óvni nessa história, e cumprirá papel decorativo. As fotos nos jornais, nas
revistas e na web sequer dão a impressão de que o ministério está sofrendo
imensa pressão popular.



A reação de Haddad


O ministro Fernando Haddad reagiu ao problema com agilidade e firmeza,
desarmando a bomba. Dirigiu-se ao povo brasileiro em cadeia nacional,
assegurando-nos que encontraria os responsáveis por esse atentado e faria valer
o direito dos estudantes a participarem do novo Enem.


Um tanto de perplexidade, contudo, se lê neste comentário de Haddad: ‘O
impacto deste ato de delinquência pode ser comparado ao assassinato de John
Lennon ou do presidente Kennedy. Foge completamente ao controle. E não se
explica o porquê’ (IstoÉ
Dinheiro
).


Os nomes de Lennon e Kennedy não foram mencionados à toa. Idealistas (na
arte, na política), tiveram a trajetória carismática interrompida de maneira
violenta. No caso do Enem, que com este episódio ganhou aos olhos da opinião
pública importância inusitada, os criminosos amadores (manipulados por alguém ou
movidos pela insensatez) tentaram assassinar uma iniciativa democrática, contra
cuja realização não existem razões convincentes.

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br