Distante da atuação do poder público e da vigilância da imprensa, a floresta amazônica ganha espaço na mídia em momentos de crise e de polêmica, como a discussão em torno do projeto de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, os recentes assassinatos de ambientalistas e a votação do Código Florestal. Mas o doloroso dia-a-dia da Amazônia, considerada o pulmão do mundo, permanece longe dos holofotes da mídia. A maior floresta tropical da Terra abriga a mais extensa reserva de água doce do mundo e o mais diversificado banco genético do planeta. A Amazônia Legal, parte da floresta amazônica compreendida no território brasileiro, se estende por nove estados, cobrindo cerca de 60% do país.
Quatro trabalhadores rurais foram assassinados no Pará e em Rondônia na semana que antecedeu à votação do Código Florestal na Câmara dos Deputados. Na terça-feira (14/6), foi divulgada a morte de mais um trabalhador no Pará. Obede Loyla Souza recebeu um tiro de espingarda na cabeça. As investigações apontam para integrantes de um grupo que extraía madeira ilegalmente na região. Estudos mostram que 98% dos crimes no Pará ficam impunes. Agricultores e líderes ambientalistas que lutam pela preservação da biodiversidade da Amazônia não contam com a proteção do governo nem com a parceria da imprensa. A maioria dos jornais e rádios está comprometia com o poder local, enquanto os grandes jornais de circulação nacional não mantêm uma estrutura fixa na região. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo ontem discutiu a pouca cobertura da mídia sobre a região amazônica.
Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro Sérgio Abranches, doutor em Ciência Política pela Universidade de Cornell. Comentarista da rádio CBN, onde mantém o boletim diário “Ecopolítica”, Abranches é colaborador permanente do blog sobre energia da National Geographic e mantém os blogs Ecopolítica e Ecopolity. Em São Paulo, o programa contou com a participação da repórter de meio ambiente Afra Balazina, do jornal O Estado de S.Paulo. Responsável pela coluna diária “Planeta”, Afra tem um blog sobre mudanças climáticas. O convidado de Brasília foi o antropólogo Alfredo Wagner de Almeida, coordenador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, da Universidade do Estado do Amazonas, em Manaus. O projeto irá realizar um mapeamento social dos povos e comunidades tradicionais da região, enfatizando a maneira como os próprios agentes sociais representam seu povoado e seu território.
Um futuro cinza
Antes do debate no estúdio, em editorial, Dines comentou que a sequência de mortes do Pará já deixou de ter destaque na mídia. “A mídia local e regional trata do assunto incidentalmente sob o ângulo policial, não está interessada em confrontar os grandes interesses políticos e econômicos e a mídia nacional, atrelada à mesma ideologia dos ruralistas, nem se abala”, criticou. Para o jornalista, a situação deve se agravar com a construção da usina de Belo Monte e com a proposta de divisão do Pará em três estados: “Diante da carência de recursos humanos, logo teremos bandidos com imunidades parlamentares e malfeitores transformados em autoridades”.
A reportagem exibida no programa entrevistou o jornalista Agostinho Vieira, que escreve a coluna “Ecoverde”, no jornal O Globo. A alta taxa de impunidade dos crimes cometidos na região, na avaliação de Vieira, é reflexo do abandono da floresta amazônica. “Enquanto você não tem a atuação do poder público, da academia, da Justiça e o jornal, a imprensa, a televisão, isso vai continuar a acontecer. O Brasil é um país grande demais, o que é ótimo para nós, mas tem esse tipo de problema”, disse Vieira. Para o jornalista, o potencial da região justificaria que as grandes empresas de comunicação montassem estruturas permanentes na Amazônia.
O jornalista Wahsington Novaes criticou a falta de um trabalho contínuo da mídia na floresta amazônica: “É preciso que haja uma cobertura mais ampla, mais sistemática, mais permanente, que consiga informar a sociedade brasileira da forma que ela precisa”, afirmou. Para Novaes, a grave situação da floresta é resultado dos diferentes projetos de ocupação da região: “A relação entre assassinatos, aumento de desmatamento, projeto de Belo Monte, isso tudo não é uma coincidência geográfica em relação ao Pará. É um problema de visões diferentes para a Amazônia. Diferenças entre as pessoas que têm uma visão apenas economicista, que querem explorar a madeira e outras coisas da Amazônia, e pessoas que acham que a Amazônia precisa ter certas regras de preservação porque é um bioma muito importante e que será cada vez mais importante daqui para frente.”
Cobertura superficial
Daniel Bramatti, repórter do jornal O Estado de S.Paulo que esteve recentemente na Amazônia, disse que a mídia local cobre os casos de violência de forma superficial e sensacionalista, tratando os crimes como fatos isolados. “Eu não vi análises sobre o contexto da violência. Hoje, o estado do Pará, principalmente a região sudeste, se transformou no mais violento do país. Tem taxas de homicídios superiores a de Honduras. Isso foi uma reportagem que saiu no Estado de S.Paulo e, para a nossa surpresa, o Diário do Pará a reproduziu inteiramente, como se fosse uma novidade para eles”, disse Bramatti. Depois de passar oito dias no Pará, Bramatti constatou que a violência no estado é extremamente banalizada: “A morte lá pode ser conseqüência de uma coisa muito grave, mas pode ser resultado de uma rixa”.
O padre Dirceu Fumagalli, coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra da Igreja Católica, que atua de forma contínua nos conflitos de terra na região amazônica, explicou que a maior parte da mídia local é comprometida com grupos políticos da região. E comentou que o restante dos meios de comunicação da região não dá a devida atenção aos crimes: “Se não é algo de impacto, não vira notícia. Este é o grande problema. As denúncias, as formalidades das famílias em relação às ameaças de morte, são o dia-a-dia, o cotidiano”. Se uma notícia não “vende” jornal, a mídia não se coloca a serviço da vida.
No debate ao vivo, o professor Alfredo Wagner chamou a atenção para o tratamento que é dado aos povos tradicionais da Amazônia – como indígenas, quilombolas, seringueiros e quebradores de coco. Na avaliação do antropólogo, essas comunidades são vistas de forma equivocada como parte de uma economia primitiva. Apesar de serem caracterizadas como representantes do atraso tecnológico, são os maiores responsáveis pela preservação da floresta. “Esse silêncio me incomoda bastante”, sinalizou Alfredo Wagner.
A imprensa do Rio de Janeiro e em São Paulo, na avaliação do professor, baseia-se apenas em pressupostos econômicos e associa o desenvolvimento a grandes obras e à expansão do agronegócio: “Se fala muito no que foi desmatado, mas não se fala no que está sendo preservado graças aos povos e comunidades tradicionais. Não tem a reversão”.
Mídia atrelada
Para o antropólogo, a imprensa regional em Manaus, no Pará ou em São Luís é refém da imprensa nacional. Muitas vezes, apenas reproduz o conteúdo de jornais de circulação nacional. “Você tem uma perversa inversão geográfica”, alertou. Outro grave problema é a relação entre o Congresso Nacional e a mídia local. “Há senadores que têm preponderância na imprensa regional. Não é só em Alagoas. No Maranhão, um senador e um ministro controlam a imprensa. No Pará, um senador controla parte da imprensa e grupos vinculados a dois deputados controlam a outra parte. Nós temos uma relação partidária com a veiculação de informações”, disse o professor.
Afra Balazina comentou que a imprensa dos grandes centros urbanos, muitas vezes, chega à floresta amazônica já depois dos “fatos consumados”. No entanto, no caso da série de assassinatos no Pará, Afra Balazina percebeu um esforço da mídia nacional em tentar compreender melhor os graves problemas da região. Uma importante diferença entre esta cobertura e outras realizadas ali foi o envio de profissionais à floresta. “A gente aqui de fora, de longe, às vezes não entende bem tudo o que vem acontecendo”, admitiu. A jornalista lamentou que a imprensa não tenha se voltado para a questão no Pará antes da recente onda de assassinatos de ambientalistas.
Longe da floresta amazônica é possível pautar a atuação da imprensa em outras esferas. Afra Balazina pontuou que, de Brasília, por exemplo, é possível cobrir a atuação governamental. Afra avaliou que a imprensa que cobre o tema desmatamento – acostumada a trabalhar com dados oficiais e informações de satélite – deveria “ir a campo” mais frequentemente para ver as conseqüências da destruição. “É uma pena. Eu acho que todo o mundo ganharia muito com isso. Eu ganharia, nossos leitores ganhariam. Mas nós realmente temos um problema de infraestrutura. É caro viajar até lá, é difícil se locomover por lá. A gente não tem uma sucursal. No Estadão a gente tem uma repórter em Manaus, mas não tem em outros estados. É uma limitação que a gente sofre”, sublinhou Balazina.
Investimento da imprensa na região
Dines comentou que a mídia se entregou a uma “resignação burocrática”. Há algumas décadas, os jornais mantinham sucursais em pontos estratégicos do país e contratavam correspondentes fixos em todo o território. Para Sérgio Abranches, a concentração no eixo Rio-São Paulo-Brasília é um dos principais problemas da imprensa hoje. “O resto do Brasil aparece pela lógica do desastre ou da efeméride”, argumentou o cientista político. Abranches ponderou que se um jornalista passar um período mais longo na Amazônia acabará descobrindo formas menos caras de viajar pela região, o que permite um fluxo de reportagens mais consistente. “Hoje, essa coisa picada me preocupa. A imprensa vai lá e cobre este evento. Pode até cobrir bem, mas depois não cobre mais. Então, para a opinião pública brasileira, para audiência, fica parecendo que eles são fatos esporádicos, quando eles são cotidianos”, ressaltou Abranches.
Na avaliação do cientista político, a importância da Amazônia no complexo climático está na agenda nacional e global sob todos os ângulos que se observe: “Se a gente pensa em mudança climática com desmatamento, ela está na pauta. Se pensa conservação de biodiversidade, ela está na pauta; conflitos com muitas mortes no campo, ela está na pauta. Se a gente pensa em conflito entre o avanço da fronteira e a necessidade de preservação e de ter uma economia mais verde, ela está na pauta. Então, evidentemente, tem que cair a ficha. É preciso cobrir a Amazônia direito”, alertou Abranches.
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A imprensa cúmplice
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV exibido em 14/6/2011
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Alguém ainda lembra do polígono da violência no Pará e daquela faixa “a floresta chora” no enterro de um líder ambientalista? Amanhã o luto voltará ao noticiário com a confirmação do assassinato do trabalhador rural Obede Loyla de Souza, 31 anos, casado, pai de três crianças, em Pacajá, Pará.
Sumiu das primeiras páginas dos jornais e das escaladas dos telejornais uma das mais dolorosas vergonhas nacionais: a matança dos que resistem ao avanço dos desmatadores, madeireiros e ruralistas sem escrúpulos. A mídia local e regional trata do assunto incidentalmente sob o ângulo policial, não está interessada em confrontar os grandes interesses políticos e econômicos e a mídia nacional, atrelada à mesma ideologia dos ruralistas, nem se abala.
O quadro só tende a agravar-se com a construção da usina de Belo Monte, onde a pressa e o espírito do vale tudo reforçarão a blindagem dos mandantes e dos pistoleiros a seu serviço.
A partilha do Pará em três estados com o pretexto de ocupar os vazios de poder só vai piorar um quadro já dramático. Diante da carência de recursos humanos, logo teremos bandidos com imunidades parlamentares e malfeitores transformados em autoridades.
Com esta tragédia anunciada, o Observatório da Imprensa não pode fugir ao seu dever de alertar que estamos todos sendo empurrados para o papel de cúmplices silenciosos e involuntários, por aqueles que deveriam nos manter informados sobre o que acontece no país.