Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ambiguidades comprometem pesquisa sobre violência contra mulheres

 

Não há dúvida de que é preciso combater tanto a violência contra as mulheres como a tolerância social com esse tipo de agressão que existem no Brasil. Não há dúvida de que é preciso combater também os preconceitos que geram e fortalecem essa violência e essa tolerância. Mas há boas razões para duvidar da confiabilidade da pesquisa sobre o nível dessa tolerância social no país divulgada recentemente pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), do governo federal, e que ainda está tendo grande repercussão nos meios de comunicação.

Além dessas considerações, é importante esclarecer também que este post não tem o objetivo de contestar pessoas que, a partir da divulgação dessa pesquisa, protestaram contra as diferentes formas de agressão às mulheres. Inclusive porque este blog não tem seu foco em comportamentos pessoais. Mas ele tem como objetivo tratar jornalisticamente de questões como a confiabilidade de estudos como esse divulgado pelo Ipea.

Ambiguidades grosseiras

Na quinta-feira (27.mar), quando os veículos online começaram a divulgar o anúncio feito pelo Ipea por meio do release “SIPS revela percepções sobre a violência contra a mulher“, já dava para perceber que havia ambiguidades grosseiras em algumas das frases apresentadas a 3.801 entrevistados de maio a junho de 2013. A começar pela questão que provavelmente foi a que teve mais repercussão na imprensa, a que aborda estupros, apresentada a seguir com seus respectivos resultados em relação às suas alternativas de respostas, da mesma forma como no relatório da pesquisa.

Grafico-25_SIPS-Ipea

O que significa “saber se comportar” em relação a mulheres no contexto dessa pergunta e de toda a entrevista? A interpretação dos autores da pesquisa está expressa no trecho a seguir, transcrito da página 23 de seu relatório.

“A culpabilização da mulher pela violência sexual é ainda mais evidente na alta concordância com a ideia de que ‘se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros’ (58,5%). Por trás da afirmação, está a noção de que os homens não conseguem controlar seus apetites sexuais; então, as mulheres, que os provocam, é que deveriam saber se comportar, e não os estupradores. A violência parece surgir, aqui, também, como uma correção. A mulher merece e deve ser estuprada para aprender a se comportar. O acesso dos homens aos corpos das mulheres é livre se elas não impuserem barreiras, como se comportar e se vestir ‘adequadamente’.”

Em outras palavras, os autores da pesquisa do Ipea descartaram completamente a possibilidade de essa questão receber respostas concordantes até mesmo por parte de pessoas – inclusive mulheres – completamente contrárias a qualquer ideia de responsabilizar vítimas de estupro por essa violência praticada contra elas. É razoável, por exemplo, supor que uma mulher em trajes sexy esteja em situação de maior risco de sofrer estupro, e essa pressuposição pode não ter nada a ver com aceitar esse tipo de violência nessas condições.

Dá para ‘entender’

Também houve duplo sentido e, consequentemente, prejuízo da aferição do nível de tolerância social à agressão masculina contra mulheres pelo uso da expressão “dá para entender” na afirmação a seguir, apresentada com seus resultados.

Grafico-20_SIPS-Ipea

Embora minoritárias, corresponderam a 33,9%, ou seja, a pouco mais de um terço do total, as opiniões concordantes ainda que parcialmente a essa afirmação, que foi considerada como “justificativa” do comportamento agressivo masculino no relatório da pesquisa, como mostra o trecho de sua página 20 transcrito a seguir com negrito deste blogueiro.

“Assim, 83,6% das pessoas entrevistadas discordaram da sentença ‘dá para entender que um homem rasgue ou quebre as coisas da mulher se ficou nervoso’. A discordância em relação à frase ‘é da natureza do homem ser violento’ foi um pouco menor, em torno de 74%. A justificativa ‘dá para entender que um homem que cresceu em uma família violenta agrida sua mulher’ agrega maiores níveis de concordância, mas, ainda assim, a maioria, em torno de 64%, dela discorda.”

Essas afirmações demonstram que os responsáveis pela pesquisa desconsideraram que, além de poder ser percebida como “justificativa” ou aceitação do comportamento masculino agressivo contra a mulher, a expressão “dá para entender” também pode ser interpretada como compreensão do processo de formação dessa agressividade no comportamento masculino.

Na verdade, pelo simples fato de ter sido construída com essa expressão, a questão é inadequada para uma pesquisa de opinião. E isso vale também para a outra frase apresentada aos entrevistados que trata sobre rasgar ou quebrar pertences de mulheres e está citada nesse mesmo trecho acima transcrito. Nesses dois casos, em vez de ”dá para entender”, deveria ter sido usada outra expressão para identificar inequivocamente a tolerância à agressão, como, por exemplo, “é aceitável”.

Mulheres ‘atacadas’

Segundo os responsáveis pela pesquisa do Ipea, a questão que mais os surpreendeu pelo elevado índice de concordâncias correspondentes à tolerância à violência contra as mulheres foi a seguinte.

Grafico-24_SIPS-Ipea

Essa questão foi criticada também por Felipe Moura Brasil, colunista de Veja, em artigo publicado no dia seguinte à divulgação da pesquisa. Embora eu considere pertinentes muitas das críticas feitas por esse jornalista ao estudo, não concordo, porém, com a interpretação dele em relação à palavra “atacadas”. Concordo com sua afirmação de que

“‘Atacar’ mulher no Brasil não é necessariamente cometer crimes contra ela. Até ‘criticar alguém’ é ‘atacar’. Quase todo homem ataca mulheres neste sentido. Se a pesquisa pretendesse esclarecer alguma coisa, teria definido a que tipo de ‘ataque’ se refere (e não teria usado a palavra ‘merece’, que, entre tantos significados, tem até mesmo o de ‘atrair sobre si’; sem contar o vazio que gírias como ‘ninguém merece!’ e ‘fulano merece!’ lhe emprestaram). (…) Agora: se a palavra ‘atacadas’ fosse trocada por ‘espancadas’ ou ‘estupradas’, é evidente que o resultado teria sido mais ameno.”

Essas observações do colunista foram mais que suficientes para apontar que a questão a que elas se referem foi completamente contaminada por conter as duas expressões vagas. Desse modo, é desnecessário eu fazer outras ponderações, exceto a de que discordo dele em suas considerações a seguir.

“Quantas vezes homens de bem não dizem aos amigos que ‘partiram para o ataque’ com fulana, querendo dizer que apenas a abordaram de forma mais incisiva, mostrando o quanto querem ter com elas alguma relação? Quantos não estimulam os outros a deixar de lero-lero e ‘partir para o ataque’? Quantas mulheres não adoram ser ‘atacadas’ neste sentido pelos homens?”

O colunista tem razão por lembrar da existência desse sentido ameno para “atacar”, mas não deixa de ser razoável pressupor que esse significado praticamente não deve ter sido interpretado desse modo por grande parte dos entrevistados, pois o contexto da entrevista não induz a considerações desse tipo.

Outra conversa

Felipe Moura Brasil voltou à carga contra a pesquisa do Ipea no dia seguinte (sábado, 29.mar) em outro artigo, trazendo dessa vez considerações que, mais pela forma do que pelo conteúdo, serviram para acirrar nesse tema a oposição entre direita e esquerda. Inclusive por relacionar a “cultura do estupro” que ”coloca mulheres contra homens (os que não estupram, inclusive)” ao PT, que “coloca negros contra brancos, filhos contra pais, sem-terra contra fazendeiros”.

Não me interessa investir nessa oposição, que muitas vezes, mesmo sendo pertinente, acaba servindo mais para desviar o foco do que considero essencial. No entanto, faço questão de dar a esse segundo artigo o crédito por me informar sobre a “Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar sobre Atitudes, Normas Culturais e Valores em Relação à Violação de Direitos Humanos e Violência – Um Estudo em 11 Capitais de Estado”, divulgada pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP em junho de 2012. E já que é para reconhecer a informação dada pelo jornalista, que ele seja creditado também por suas palavras a seguir sobre o estudo da USP.

“Mas o que a população brasileira realmente pensa a respeito de estupradores? Eu conto: de acordo com uma pesquisa de 2010 do Núcleo de Estudos da Violência da USP, 39,5% dos entrevistados acham que estupradores merecem pena de morte, 34,3% defendem prisão perpétua e 11,1% apoiam prisão com trabalhos forçados. Ou seja: a imensa maioria da população defende penas tão duras aos estupradores que elas sequer estão previstas no nosso Código Penal. Ou ainda, traduzindo para o idioma do IPEA: nenhum outro criminoso ‘merece’ tanto a pena de morte, para os brasileiros, quanto o estuprador.”

Os dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP são um contraponto equilibrado às afirmações diparatadas do relatório da pesquisa do Ipea, principalmente àquela já reproduzida na primeira citação acima e que vale a pena destacar agora:

“O acesso dos homens aos corpos das mulheres é livre se elas não impuserem barreiras, como se comportar e se vestir ‘adequadamente’.”

Objeções de consistência

Muitas outras objeções podem ser feitas à consistência do estudo divulgado pelo Ipea, inclusive no que diz respeito ao uso, na forma de questões, de algumas máximas populares – também passíveis de ambiguidade na interpretação –, como, por exemplo, “Em briga de marido e mulher não se deve meter a colher” e outras.

Se alguma tolerância foi efetivamente confirmada por meio desse estudo, essa foi a que se deu em relação à presença de ambiguidades nas questões apresentadas aos entrevistados.

 

Leia também

Quem é machista, o povo ou a pesquisa? — Ligia Martins de Almeida

******

Maurício Tuffani é jornalista