Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Antidemocracia e as lições de desrespeito

Há algo a se acrescentar à cobertura da invasão do prédio do Congresso Nacional pelo MLST, mesmo tendo sido fartos o registro factual, as declarações de autoridades e os comentários de colunistas. Há, de um lado, as condenações terminantes; de outro, algumas ponderações benevolentes. Mas se deixou de fazer uma conexão, bastante razoável, entre esse acontecimento e outros que, embora atinentes a lugares e situações diferentes, manifestam pontos comuns. Um destes está expresso nas palavras do secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Odilo Scherer: ‘Desrespeito às instituições democráticas’. A ressalva do religioso de que há sérias ‘pendências sociais’ por trás de um ato como esse não diminui a força da palavra ‘desrespeito’.

A propósito desta palavra, seria útil a jornalistas e leitores em geral tomar conhecimento do livro Respeito – a formação do caráter em um mundo desigual, de Richard Sennett, sociólogo americano (bastante conhecido nos meios acadêmicos) que escreve de maneira clara e razoavelmente próxima do estilo jornalístico. Nesta obra, ele se diz convencido de que o respeito é ‘fundamental para a nossa experiência das relações sociais e do self‘. Ou seja, tanto no plano coletivo quanto no individual, a categoria ‘respeito’ aplica-se como algo essencial à manutenção do vínculo intersubjetivo.

Um provérbio cabila da África do Norte – ‘o homem é homem através dos homens, só Deus é Deus através de Si mesmo’ – sugere que o ser humano é dignificado pela fé. Sennett cita-o para acrescentar que, hoje, principalmente a dignidade ancora em instituições do ordenamento civil e laico, a exemplo do trabalho e outras.

Bando anômicos

Reconhecimento, honra, dignidade, termos às vezes tratados como sinônimos pelo pensamento social, são sentimentos que confluem para o respeito. Os atos que transmitem respeito costumam ser os atos de reconhecimento pelos outros. Deste, um dos principais motivadores é a correta inserção do indivíduo no mundo da produção. ‘O trabalho é melhor fonte de respeito próprio do que um cheque do governo’, dizem os reformadores do estado de bem-estar (welfare state).

Ora, a dignidade do trabalho, assim como a dignidade da representação democrática e outras vêm sofrendo abalos fortes no mundo inteiro, mas especialmente em países do Terceiro Mundo, onde o desemprego crescente se soma à precariedade das formas institucionais, como é o caso do Brasil.

Há também o caso das desigualdades específicas, como afirma um dos maiores especialistas na questão agrária do país, o professor Bernardo Mançano Fernandes, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), para quem a desigualdade, no caso dos sem-terra, se expressa na representação política: ‘Dez deputados defendem os agricultores e metade do Congresso, o agronegócio'(O Globo, 11/6/2006). O desrespeito irrompe, assim, como um efeito, ativo e passivo, desses fatores.

Passivo: no abismo cavado pelas desigualdades sociais, diminui exponencialmente o reconhecimento de si mesmo como sujeito-cidadão, quando não da própria vida como um valor; ativo: disseminam-se atitudes e atos predatórios ou violentos contra o Outro no espaço público. Basta prestar atenção à contínua depredação de equipamentos públicos (transportes, postos telefônicos, monumentos), às explosões coletivas de violência cruel, à transformação de grupos sociais em bandos anômicos, mas também atos e atitudes desrespeitosos e indignos de representantes democraticamente formais do povo, para nos darmos conta de que a questão do respeito assume uma dimensão especial no momento histórico que atravessamos.

Satisfação perversa

O vandalismo no prédio do Congresso demanda reflexão. O episódio é o ápice de uma prática sistemática de descaso para com os mecanismos democráticos. Os exemplos e os sintomas se multiplicam. Uma recente série de reportagens (excelentes) do Globo sobre o desrespeito às normas de preservação ambiental no Rio de Janeiro tinha como título ‘Ilegal, e daí?’.

Aliás, setores da própria mídia não raro desconhecem a honra e a dignidade clássicas do trabalho jornalístico e, guiados apenas pelos números da circulação e do faturamento publicitário, não parecem ter pejo algum em estridular como as rãs na superfície dos charcos pantanosos. E, no entanto, é o jornalismo quem melhor poderia ajudar a esclarecer o espaço público sobre como conciliar as desigualdades sociais com o respeito mútuo – logo, como evitar compensações perversas para os sentimentos de humilhação coletiva.

É preciso não esquecer que a satisfação perversa da honra social foi a solução histórica oferecida pelo nazismo, mas oferecida sempre pelos discursos do autoritarismo e da força.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro