Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

As coincidências e os acasos

 

No dia 24 o juiz Amílcar Roberto Bezerra Guimarães postou uma carta aberta a mim endereçada no seu facebook. Nela, lamenta que seu pedido não seja atendido e continuem a tratá-lo por juiz. Ele quer que o considerem como pessoa normal, ou, supostamente por humor, como o duque de Capanema, o título de nobreza autoconcedido.

Quer que a polêmica seja travada com o pretendido fair-play dos amigos que o acompanham na rede social. O tom do diálogo devia ser risonho e franco, permitindo-lhe incorporar a denominação que lhe dei em um dos artigos da edição anterior do Jornal Pessoal: o bárbaro.

No entanto, o que está em questão é uma sentença por ele produzida no exercício de sua função jurisdicional. Ou na usurpação dessa função, como já foi largamente demonstrado desde que ela veio ao mundo, em 2005, como um aborto da legalidade. Vício insanável de origem que ele continua a ignorar, como se não existisse.

O destinatário da sentença sou eu, parte no processo que ele agride desde o primeiro momento, inclusive na própria sentença, quando nem rede social havia e ele não se apresentava com seu “eu” privado, embora sob a metafísica proteção à privacidade de uma ferramenta virtual que deixa a todos na vitrine pública. Ainda mais como, no caso do facebook do juiz da 1ª vara cível do fórum de Belém, especializada nas questões de família e de comércio, nenhuma restrição há ao ingresso de estranhos. Estranha privacidade.

Cinco minutos

O magistrado acha triste essa situação porque eu estaria desperdiçando oportunidade rara: um juiz que, diferentemente dos seus pares, desce do seu pedestal para se comportar como um dentre os simples mortais.

É um sofisma grosseiro. Ele não precisa estar num pedestal para tratar com seriedade e correção, ainda que também com doses de iconoclastia, de uma questão grave: a condenação de um cidadão que, no exercício do seu ofício, sob proteção constitucional, diz a verdade. Verdade esta que diz respeito à defesa de um bem valiosíssimo do patrimônio público, ameaçado pela voracidade de um empresário inescrupuloso.

Não se trata de vinho, viagem, noitada ou tema semelhante da agenda das pessoas que dialogam com Amílcar, o bárbaro. É um assunto grave, envolve recursos vitais da natureza e valores que, mesmo na contabilidade mais obtusa, valem bilhões de dólares.

A sentença do juiz, coerente com as iniciativas dos demais magistrados do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, foi favorável ao grileiro. O desembargador (já aposentado) João Alberto Paiva declarou em sua decisão que era “inquestionável” a propriedade de Cecílio do Rego Almeida sobre 4,7 milhões de hectares no vale do Xingu.

A expressão é absurda. O desembargador podia até dizer que se considerava convencido pelos argumentos do empresário quanto aos seus pretendidos domínios. Mas não podia considerá-los inquestionáveis. Afinal, todos os órgãos do poder público com alguma jurisdição sobre a questão vinham questionando a alegada propriedade privada, com provas e argumentos apresentados desde 1996, com abundância e fundamentação. Havia ação judicial em curso para a anulação e cancelamento dos registros imobiliários das terras, por fim acatada pela justiça federal, depois de 15 anos de tramitação, 10 dos quais na justiça estadual, na qual o grileiro sempre ganhou.

A segunda decisão vergonhosa foi a da desembargadora (igualmente aposentada, com todas as honras de estilo) Maria do Céu Cabral Duarte. Ela deu um despacho favorável ao grileiro antes que o seu pedido (sempre feito por vias e travessas), originário de Altamira, tivesse chegado ao protocolo do TJE em Belém. Com o agravante de que ela nem foi sorteada para receber o processo. Parecia certa de que o caminho em sua direção estava já pavimentado.

Os dois magistrados ajuizaram ações contra mim quando, em linguagem técnica e polida, mostrei o que haviam feito e fiz críticas ao procedimento adotado. Não contestaram de público minhas matérias. Foram diretamente à justiça, não como cidadãos comuns, mas enquanto integrantes de uma corporação poderosa, talvez a mais corporativa (o pleonasmo é necessário) de todas. Juntaram-se, nessa ofensiva, ao “laranja” do grileiro (o madeireiro Wandeir dos Reis Costa) e ao próprio C. R. Almeida. No total, 10 ações combinadas para me fulminar.

O advogado do desembargador João Alberto foi ninguém menos do que o influente (e caro) ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral, José Eduardo Alckmin. Ele veio de Brasília, dormiu em Belém, atuou por menos de cinco minutos na audiência de conciliação (que não foi aceita por mim), apenas para se credenciar, voltou para o Hilton e retornou à capital federal, onde chefia um grande escritório. Quanto cobrou por esse serviço? Quem o pagou? No Distrito Federal ele era então (talvez ainda seja) advogado da Construtora C. R. Almeida em suas muitas demandas no foro federal. Mera coincidência, é claro.

Versalhes ao tucupi

Um parêntesis interessante. Por ironia da história, o ex-ministro se tornou também defensor do senador Jader Barbalho. Quando governador, no seu segundo mandato, Jader patrocinou a ascensão de João Alberto ao desembargo pelo quinto constitucional da seção paraense da Ordem dos Advogados. Não por escolha voluntária.

O governador patrocinou o nome do advogado João Roberto Cavaleiro de Macedo, vetado pela maioria do TJE, apesar de todas as suas credenciais, talvez por ele ser o Consultor Geral do Estado que tentou abrir algumas caixas pretas na administração pública, incluindo as do poder judiciário.

Em represália, Jader sancionou João Alberto, o terceiro da lista tríplice. E assim o advogado chegou aonde não se supunha que pudesse chegar. Caminhos da política paraense, que quase sempre passam pelos desvãos do fórum.

Para se ter uma ideia dessas coincidências sugestivas, lembro que o primeiro advogado dos irmãos Maiorana, nas 14 ações judiciais que eles propuseram contra mim em seguida à agressão de Ronaldo foi o então coordenador dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho.

A sede da C. R. Almeida é em Curitiba, a capital do Paraná. Depois de abrir as ações, Miranda Coutinho deixou todas as causas dos Maioranas, que até então só se tinham valido de advogados locais. Oficialmente, desconheço os motivos.

Quaisquer que eles tenham sido, os elos dessa teia caracterizam uma autêntica combinação de interesses voltada para um objeto comum: este jornal, que, por ser singular, significa automaticamente uma única pessoa. Eu era um entrave tanto para os Maioranas, empenhados em se livrar de um acompanhante crítico incômodo, como ao grileiro, que queria eliminar uma fonte de informações fora do seu alcance, que não era pequeno.

Por nova coincidência, numa tarde de quinta-feira, 17 de junho de 2005, o juiz Amílcar Guimarães entrou nesse circuito. Ele era – e continua a ser – o titular da 1ª vara cível. No dia anterior devia ter assumido interinamente a 4ª vara, por causa da ausência por três dias da juíza Luzia dos Santos.

Por causa de um erro de preenchimento do ato oficial de designação, a substituição só entrou em vigor nessa quinta-feira, mas Amílcar não apareceu na vara nem deu qualquer ordem ou fez qualquer pedido. Parecia desinteressado pelos processos da 4ª vara. Era o comum, o rotineiro.

Todos os magistrados se comportam dessa maneira: para que agravar suas tarefas com procedimentos ordinários que só irão entravar sua atividade na vara efetiva, ainda mais porque a substituição seria, de fato, de apenas dois dias – e os dias anteriores a um final de semana, depois do qual a titular estaria de volta?

Foi no jogo de tênis na Assembleia Paraense que o juiz foi informado sobre o processo no qual eu era réu. Quem lhe passou a informação certamente tinha interesse pessoal no feito, interesse pessoal do qual o magistrado partilhou, conforme confessaria depois, por escrito, na informação prestada à desembargadora Carmencin Cavalcante, relatora da representação que fiz contra ele.

Quem foi esse (in)confidente interessado? Só Amílcar pode dar a resposta de público. Mas há outra coincidência: o advogado Calilo Kzan Neto também é tenista da sede do clube social. Ele é marido e foi advogado da esposa, Rosângela Maiorana Kzan, nas cinco ações sucessivamente ajuizadas por ela contra mim, em 1992, quando a perseguição via judicial foi desencadeada. E que, no paroxismo do patrocínio interessado, me agrediu fisicamente nas escadarias de acesso ao fórum de Belém, onde o TJE também tinha na época a sua sede (hoje no palácio Lauro Sodré, a Versalhes ao tucupi). Outra mera circunstância, é claro.

Habeas corpus preventivo

Esta história eu já contei diversas vezes. Em nenhuma delas disse que o juiz Amílcar Roberto Bezerra Guimarães recebeu dinheiro para me condenar. Não há uma única prova ou evidência de que ele tenha trocado sua sentença por propina. Ele a lavrou por interesse pessoal, evidente e confessado por escrito.

Seria um interesse relevante: o juiz, conforme ele alega, queria apresentar ao distinto público sua tese – original, revolucionária – sobre a hierarquia de dois direitos constitucionais (a liberdade de imprensa e a honra pessoal), em permanente conflito. A tese embasou a sentença, mas não parece ter tido o condão de mudar a doutrina ou a jurisprudência nacional a respeito. Só é levada em consideração por ter consumado um absurdo: a manutenção da crassa grilagem.

Responsável (veja-se só) pelos litígios de família e de comércio, essa não é a seara do juiz Amílcar. Foi uma irresponsabilidade se aproveitar da ocasião para exercer um mero alvitre intelectual, digamos assim. É sua característica ignorar as regras imposta aos julgadores pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional e debochar ou ofender as partes, mesmo aquelas que comparecem à sala de audiências e se sujeitam às suas diatribes.

Ele faz isso com qualquer um. Fez comigo e repetiu o desrespeito com os seis diretores do Banco da Amazônia, que se queixaram dele à Corregedoria Metropolitana de Justiça do TJE. Na sentença, disse que os diretores do banco eram madres Tereza de Calcutá usando “argumentos velhacos” (o que lembra a associação infeliz e desrespeitosa que fez de mim em relação à irmã Dorothy Stang). Definiu a administração do Basa como “tresloucada” e disse que eram “picaretas”.

Na apreciação da reclamação, a corregedora ressalta que o juiz “já é reincidente na prática” descrita pelos diretores do Basa, “usando termos e expressões que não se coadunam com a função jurisdicional, descumprindo, assim, as recomendações” contidas numa advertência que a própria corregedoria fizera a Amílcar.

A corregedoria lhe recomendara então para que, continuando a desempenhar o seu ofício, “com o afinco de praxe”, usasse, porém, “termos e expressões condizentes com a função jurisdicional, bem como, adote a altivez e a sobriedade como parâmetros de conduta funcional, embora sob a forma expressa, pois, ao contrário, não restará a este Órgão Correcional outra alternativa senão adotar as medidas de cunho administrativo cabível”.

Na época a corregedoria decidiu não instaurar procedimento administrativo disciplinar contra o magistrado, apesar de acatar a reclamação feita por ele. E quem formulou a representação? O presidente do Conselho Federal da OAB, Roberto Antonio Busato, e o presidente da OAB/Pará, Ophir Cavalcante Júnior. Por outra ironia da história, hoje Busato é interventor federal na OAB estadual e Ophir preside a entidade nacional. Nada fizeram em relação ao “caso” atual. Nem a OAB nem qualquer advogado ou magistrado, pessoalmente ou através das suas entidades de classe. Comovem-se apenas por motivações corporativas.

Com a reincidência, a desembargadora Carmencin Cavalcante perdeu a paciência com o juiz e votou pela instauração do processo administrativo contra ele. O Conselho da Magistratura, por maioria de votos, endossou a posição. Mas o desembargador Milton Nobre, na presidência do TJE, desviou o curso natural da história. O Tribunal Pleno refez o percurso e indeferiu o PDA. O juiz reconquistou aliados para continuar sua prática de ofensas e agressões. Tinha seus motivos para se achar uma estrela no firmamento da justiça do Pará.

É o que o leva a me desafiar a explicar como sua sentença é fraudada e injusta se foi confirmada em todos os momentos recursais que tive ao meu dispor perante o tribunal. Diz que o ataco para não enfrentar os desembargadores, no que sua interpretação passa a ser doentia, diante dos tantos nomes que citei e atuações que arrolei nos dossiês e na edição anterior deste jornal. Aceitar seu repto seria repetir o que já escrevi. Sugiro ao magistrado que não fique na edição especial que lhe deram. Leia tudo para poder falar com algum conhecimento de causa.

Na sua carta aberta o magistrado pede que eu lhe dê uma trégua e depois sentencia que a história acabou. Posso dizer o que quiser sob a proteção do habeas corpus preventivo que ele me concede, de que jamais me processará pelo que vier a dizer dele.

O pior pecado

O que já disse e o que ainda vier a dizer são resultantes do meu dever de ofício, de informante da sociedade, de auditor do poder. A pessoa de Amílcar Roberto Bezerra Guimarães não está na órbita do meu interesse. Ele pode permanecer tranquilo na companhia das cadelas, os seres que mais ama na vida, e desfrutar da sua vacuidade. Mas enquanto exercer o poder de tutela que a sociedade lhe conferiu, é motivo de interesse, apreensão e revolta.

Não por ser um bárbaro em abstrato ou da forma como é bárbaro Hagar, o terrível, maravilhosa criação de Dick Browne. É no sentido de cometer barbaridades que tanto males causam à sociedade e ao patrimônio público. Se a justiça não se vexa em lhe conceder arma tão perigosa, se seus pares são apenas seus cúmplices, se os representantes legítimos (ou institucionais) da sociedade se acovardam, se a omissão de todos provoca todos esses desmandos e absurdos, que fique claro: o Jornal Pessoal continuará a cumprir as suas missões, dentre as quais está a de não permitir que esses Amílcares ajam com indiferença em relação aos dramas e tragédias coletivos. De indiferença, o pior dos pecados, este jornal não padece.

Segue-se a carta aberta do juiz, tal como foi escrita:

Hoje me deram uma cópia de uma edição especial do Jornal do LFP com páginas dedicadas ao Duque de Capanema. De lamentável só o fato de não terem atendido ao meu apelo de não se referirem a mim como JUIZ. Triste, porque sempre achei que o juiz deve descer do pedestal onde muitos acham que devem manter-se, e quando eu tento descer o LFP faz questão de me empurrar de volta ao pedestal.

Gostaria que o jornalista explicasse à sociedade paraense como e porque sentença tão injusta e fraudada, com tantos e todos os vícios por ele descritos, foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Diga o nome dos desembargadores que confirmaram a sentença e diga as razões pelas quais ignoraram esses fatos que apontas como tão relevantes. Diga, para que eu possa dividir com eles, que são mais graduados e experientes, o teu calvário.

Tu hás de convir Lúcio, que pior do que “fraudar” uma sentença; pior do que prolatar uma sentença injusta, é confirmar essa sentença em grau de recurso. Então divide um pouco o teu veneno e vai encarnar nos desembargadores que confirmaram a sentença, ou quem sabe no teu advogado que não recorreu às Câmaras reunidas. Sei lá, me dá uma folga…
Já explicou???

Já?
Muito bem. Definitivamente essa história acabou.

Durante anos, muitos anos, procurei um adjetivo que pudesse definir o Duque de Capanema. Os senhores não têm idéia do drama que isso significou para um sujeito desajuizado como eu. Isso (loucos são assim mesmo) era fundamental para a minha vida, eu cheguei a dois: “O Sereno” e “O Justo”. “O Sereno”já era usado pelo meu amigo Ricardo Dias, luthier do Rio de janeiro. Sobrou “O justo”. Meu Deus, que coisa ridícula. Quando me lembro que usei esse adjetivo para definir o Duque de Capanema, que foi eleito duas vezes o homem mais inteligente de todos os tempos, passado, presente e futuro pela ASIM- American Society for Inteligence Measure (Eleição à unanimidade de seus 60.000 membros), quase morro de vergonha. Quanta falta de imaginação.

Aí me aparece o Lúcio Flávio Pinto, meu desafeto, e me crava uma manchete com letras garrafais: Amilcar Guimarães, o Bárbaro.
Um adjetivo. Um simples adjetivo…

Seguiu-se uma explosão de felicidade, uma supernova, passeei pelas nebulosas, tive um orgasmo. Era tudo que eu precisava ouvir. É isso que eu sou: um bárbaro.

Note que isso não é bom nem ruim, é só uma constatação, mas sabendo quem sou eu posso me orientar melhor na vida.

Dom Amilcar de Guimarães, o Bárbaro

Porra!!!, eu adorrei isso.

Bem, como gratidão, declaro a quem interessar possa que nunca, jamais, em tempo algum, sob nenhum pretexto, processarei o jornalista Lúcio Flavio Pinto. Nem que ele ofenda minha mãe, meu pai, minhas cadelas (que são as coisas que eu mais amo no mundo). Portanto Lúcio eu estou te dando um salvo conduto, cível e criminal, para você fazer o que quiser com o meu nome, com a minha honra e tudo mais. Pode mandar ver. Minha gratidão será eterna.

Isto porque, qualquer dano que você me cause, será sempre menor do que o tesouro emocional que você me entregou com esse adjetivo………… “O Bárbaro”.
Hoje vou dormir feliz como não o fazia há muitos anos.
Obrigado Lúcio.

***

[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]