Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As escolas e o discurso da ineficiência

A educação básica representa um grave problema social brasileiro. Sobre isto ninguém tem dúvida. Todavia, os problemas educacionais não são uma primazia do Brasil. Representam um enorme gargalo em todo o planeta. O ensino médio, por exemplo, figura entre os grandes desafios para a França, para o Japão e para os Estados Unidos.

O cientista social Norman Gall, que dirige o Instituto Fernand Braudel no Brasil, chegou a publicar uma série de reportagens no ano de 2007, no Estado de S.Paulo, relatando os percalços do ensino médio dos EUA. Em Nova York, segundo Gall, o prefeito Michael Bloomberg teve que realizar diversas intervenções nas chamadas ‘escolas problemáticas’. Isso implicava, inclusive, policiar ostensivamente diversas delas, além de usar detector de metais e realizar revistas periódicas nos estudantes.

Diante do cenário complexo da educação brasileira e mundial, todos os esforços para que se possa sanar tantos desafios são bem-vindos. Segundo o Estadão, este problema o incomoda. É o que ele tenta deixar transparecer em seu editorial do dia 20/08/2010, intitulado ‘O inchaço do currículo escolar’.

Mas diz o ditado popular que ‘quem vê cara, não vê coração’. Se a ‘cara’ do Estadão está no problema social da educação, seu ‘coração’ está nos cofres das escolas particulares do estado de São Paulo. O segmento privado, claro, paga a contribuição de bom grado, pois espera como recompensa ser ‘inocentado’ de não aplicar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) ao não ofertar obrigatoriamente Sociologia e Filosofia como disciplinas e, com isso, poupar investimentos ao não contratar novos docentes.

Educação ambiental e Estatuto do Idoso

Sem nenhum constrangimento, o Estadão tenta confundir o leitor igualando ‘conteúdos’ e ‘disciplinas’. Afirma textualmente que as escolas estão ‘obrigadas’ a ofertar seis novas disciplinas: cultura afro-brasileira e cultura indígena, filosofia, sociologia, meio ambiente, regras de trânsito e direitos das crianças e dos idosos.

Todavia, como todos devem saber, apenas duas dessas figuram como disciplinas na LDB, a Sociologia e a Filosofia. As outras são propostas de conteúdos e devem entrar de forma transversal nas disciplinas já existentes.

Os direitos de crianças e adolescentes figuram na LDB por meio da Lei 11.525/2007. Indicam, contudo, que tais temas sejam ofertados apenas no ensino fundamental. Já a Lei N º 11.645/2008 dispõe sobre a oferta de conteúdos referentes à história e cultura africana e indígena. Por meio dela, se sai do enfoque eurocêntrico e busca-se conhecer mais sobre a diversidade planetária e brasileira. Seus conteúdos também devem ser ofertados de forma transversal pelas disciplinas já existentes.

Ainda como proposição de temas para o sistema de ensino, mas de forma mais precária, uma vez que não modifica a LDB, a Política Nacional de Educação Ambiental e o Estatuto do Idoso recomendam que meio ambiente e situação do idoso sejam abordados em todos os níveis de ensino. De forma similar, o ensino relativo às regras de trânsito figura, não nos últimos três anos como diz o Estadão, mas estão presentes desde à aprovação do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), e que passou a vigorar no início de 1998. Contudo, conforme orientação do Conselho Nacional de Educação (CNE), caberia ao Conselho Nacional de Trânsito (Contran) estudar formas de ofertar a educação no trânsito.

Evidentemente, o Estadão parece não estar preocupado com as mais de 50.000 pessoas que morrem anualmente no trânsito, nem como a educação pode contribuir para minorar este problema. Pouco importa ainda que uma em cada quatro crianças sejam sistematicamente vítimas de violência e que pouco ou nada conheçam sobre seus direitos.

Uma medida e dois pesos

Prosaicamente, o Estadão acusa tais preocupações de ‘dervirtuamentos’. Fala isso acusando ‘políticos, movimentos sociais e entidades engajadas’. Se para o jornal, os movimentos agem movidos pelo viés ideológico, o lobby dos colégios particulares representa tão somente uma ação legítima. Nada de imparcialidade, postura estritamente ideológica!

Ao que tudo indica, o Estadão sabe, mas prefere induzir seus leitores ao erro. Por isso nega que os movimentos sociais historicamente sempre tiveram importante papel para a construção de uma sociedade democrática.

Contrariamente, o que estão fazendo as escolas particulares de São Paulo? Violando claramente uma lei federal, a LDB. O Estadão ataca a inclusão de ‘seis’ disciplinas em nome das escolas particulares porque quer tão somente defender o desejo delas de não ofertar Sociologia e Filosofia.

O Estadão diz que está preocupado com a desigualdade, mas se nega a reconhecer que as assimetrias étnico-raciais e de gênero são fortes responsáveis pela manutenção da desigualdade entre negros e brancos e entre homens e mulheres. Diante do cenário de desigualdade que atinge as mulheres é que a Lei Maria da Penha indica a importância da abordagem, em todos os níveis de ensino, sobre a situação da mulher brasileira (se o Estadão soubesse disso, diria que eram sete, e não seis ‘disciplinas’).

Contraditoriamente, para quem afirma desejar romper a desigualdade, o jornal condena tais proposições. Segundo ele, tais inclusões apenas agravam as distorções do sistema educacional. Sem dúvida, este é um discurso capcioso, típico de quem pretende defender a manutenção de uma educação que prima por uma formação reducionista, como as que se observam na maior parte das escolas privadas, que não preparam para a cidadania, mas apenas para o vestibular. Para tanto, deve-se rejeitar todas as disciplinas e conteúdos que possuam viés social. Ou seja, quanto menos olharmos para os nossos problemas sociais, melhor.

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Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), professor da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Federal de Goiás (UFG)