Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As trágicas conseqüências das ações simuladas

Em Brasília, a chamada de uma matéria publicada pelo CorreioWeb em 19 de abril de 2007 aponta: ‘Simulação de seqüestro a ônibus provoca crise no comando de segurança de Brasília’. Não muito distante da capital do país, em Rondonópolis, Mato Grosso, uma outra matéria jornalística do Plantão Gazeta, datada de 25 maio de 2007 (portanto, pouco mais de um mês após a publicação da matéria do CorreioWeb), anuncia: ‘Dez pessoas são baleadas em simulação da PM’.

Coincidência dos fatos? É Provável que sim… A suposta questão da ‘simulação de seqüestro’ que ‘provoca uma crise no comando de segurança de Brasília’ deveu-se ao desencontro que tal simulação produziu entre as autoridades do setor, já que algumas delas sequer sabiam da realização do evento. Entre tais autoridades não-informadas estava até o titular da Divisão Anti-seqüestro da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF). Ao que consta, ele e sua equipe chegaram a rumar para o local do ‘exercício’, preparados, inclusive em termos de armamento, para fazer face a um seqüestro real.

A munição que todos eles levavam era real, justa e propositadamente, e poderia ter sido mesmo utilizada em função de algum eventual incidente no local, já que nenhum deles sabia que a situação era uma simulação, portanto, falsa…

‘Mutirão da Cidadania’

De toda forma, o comando da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), segundo a matéria citada do CorreioWeb, teria declarado reconhecer que ‘houve uma falha de comunicação com alguns meios de imprensa e com a Secretaria de Segurança Pública’. Isto talvez fosse até justificável em relação aos meios de comunicação, mas absolutamente inexplicável em relação aos representantes da Secretaria de Segurança Pública.

Logo que soube da suposta ação criminosa em curso, o titular da Divisão Anti-Seqüestro da PCDF, delegado João Cleiber Esper, convocou toda sua equipe emergencialmente, montando um esquema tático e técnico e seguindo para o local. A mesma matéria do CorreioWeb aponta as seguintes declarações atribuídas a ele: ‘Só quando eu cheguei, vi que era uma simulação. Nem me informaram. Tive que descobrir. Um treinamento totalmente irresponsável. O mais grave é que ninguém foi avisado. Colocou a população e policiais em risco.’

Pouco mais de um mês depois do imbróglio da simulação de Brasília, em uma outra simulação algo semelhante, também envolvendo um ônibus e supostos reféns, desta vez em Rondonópolis, estado de Mato Grosso, a ‘falha’ foi fatal… Era o ‘Mutirão da Cidadania’, cerimônia incluindo desfiles cívicos de estudantes, bombeiros e policiais militares. O evento teria sua ‘chave de ouro’ com uma ação policial conduzida por integrantes do Grupo de Operações Especiais (GOE) da Polícia Militar de Mato Grosso (PMMT), de alguma forma semelhante ao que ocorrera na capital do país um mês antes, só que em uma simulação publicamente reconhecida como tal.

Bravura ‘espetacularizada’

A munição que todos eles deveriam levar seria obviamente de ‘festim’ (apenas detonando e fazendo barulho, mas sem projétil ou bala), já que todos teriam de saber previamente que se tratava de uma situação simulada, portanto, falsa…

O ônibus foi abordado em uma ‘invasão tática policial’, como qualificou a imprensa. No momento da ação, entretanto, os presentes foram surpreendidos por disparos reais e pessoas caindo no chão. O saldo final inclui uma criança de 13 anos morta e 9 feridos que foram levados para um hospital local. Um deles, também criança, permanece com uma bala alojada na cabeça no dia 27 de maio de 2007.

É possível imaginar que existam ‘lições por serem aprendidas’, extraídas dos dois lamentáveis eventos, tanto o de Brasília quanto o de Rondonópolis. A primeira delas é de que certos exercícios policiais, aí incluídas as simulações de seqüestro, sabidas ou não pelas autoridades e pela população, representam um risco desnecessário para os circunstantes. Não devem, portanto, ser realizados em meio ao público, sejam elas simulações à guisa de treinamento ou, menos ainda, enquanto ‘espetáculo’. Segundo o adágio popular, ‘o diabo matou a mãe com um cano de bota’…

Uma outra lição, dado a coincidência do tipo de força policial envolvida – ‘operações especiais’ – é a de que suas ações, sempre glamourizadas, tanto na realidade quanto na ficção cinematográfica, precisam ser gerenciadas com extrema ética e cautela. O ‘fetiche policial’, tantas vezes apontado na literatura especializada, parece ir ao limite quando se trata das chamadas ‘operações especiais’. Se a bravura deste tipo de policial é um enorme atributo de efetividade e eficácia para a defesa da comunidade quando está propriamente direcionada, pode ter conseqüências extremamente adversas quando ‘espetacularizada’ ou mal gerenciada no contexto da segurança pública.

Credibilidade das polícias

Nos dois eventos, portanto, falhas gerenciais – tanto no que tange à liderança institucional, quanto no atributo técnico e tático do emprego de ‘forças especiais’ – parecem fatores presentes. A similitude do tipo de força policial envolvida, natureza da suposta ‘missão’, bem como a pouca distância temporal que separa os dois eventos, podem ser também indicativos de uma situação comum prevalecente em diferentes unidades federativas.

Caberia, portanto, com a urgência que o caso requer, a promoção de um disciplinamento único e centralizado do treinamento e tipo de emprego das chamadas ‘forças especiais policiais’, quiçá sob a direção e competente coordenação da atual gestão central da segurança pública do país (Secretaria Nacional de Segurança Pública). Assim, poder-se-ia instituir, de uma vez por todas, uma ‘doutrina de emprego policial’, tanto para as forças policiais regulares quanto suas ‘forças especiais’.

A doutrina, tida por muitos como ‘a consolidação das melhores práticas’, ainda é um tema que injustificadamente permanece esquecido em várias instituições policiais do país. É comum não encontrar ‘doutrina e pesquisa’ sequer como parte integrante da estrutura organizacional de determinadas instituições policiais brasileiras. Da mesma forma, a trilogia de pós-graduação, pesquisa e extensão em gestão da segurança pública, atividade hoje instalada e em funcionamento em várias instituições de ensino superior do país (o UniDF no Distrito Federal), permanece desdenhada e/ou ignorada por alguns setores reacionários da segurança pública do Brasil.

Queiramos ou não, existe hoje uma nova classe de policiais, tanto no Brasil quanto nos países do chamado ‘Primeiro Mundo’, cuja marca de ação profissional está pautada pelo rigoroso critério técnico e tático com que abordam as questões da segurança pública, superando, em sua competência e ética, as possíveis ‘falhas’ que levaram aos desencontros recentes de Brasília e Rondonópolis. O último desses episódios, inclusive, com o prejuízo incalculável de perda de vida e produção de lesões na população, o que certamente produz impacto significativo sobre a própria credibilidade pública das instituições policiais do país como um todo.

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Coordenador para Assuntos de Segurança Pública do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Defesa, Segurança e Ordem Pública (Nedop) do Centro Universitário do Distrito Federal (UniDF); coordenador dos Cursos de Especialização (MBA) em Gestão da Segurança Pública e Privada (CEGESPP) e Gestão da Segurança Pública com foco em Inteligência (CEGESP-Intel) do Instituto de Cooperação e Assistência Técnica (ICAT) do UniDF; e consultor-sênior do Centro de Treinamento em Segurança Pública para a América Latina e Caribe (Treinasp) da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça