Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As foto-charges e as orelhas de Chávez

A edição nº 28.849 da Folha de S.Paulo (28/03/2008) estampou o mais novo personagem da esfera pública folhesca: o Mickey Chávez. O nome foi escolhido por vários blogueiros de plantão que aproveitaram a foto de capa que mostrava a imagem do presidente venezuelano ‘encaixada’ a duas janelas circulares pretas desfocadas.

Ao invés de engrandecer a figura, tal como a foto de Domício Pinheiro que ao desfocar a campana de uma tuba fez surgir o São Pelé, a foto de Lula Marques fez surgir o primeiro cartoon bolivariano. O chapéu da legenda da foto (‘Aprendiz de Feiticeiro’) só fez confirmar a caracterização de Hugo Chávez como o ratinho de Disney.

Estamos aqui a presenciar um gênero jornalístico não-inédito, mas cada vez mais freqüente na Folha de S.Paulo, que podemos chamar de foto-charge. As foto-charges são resultados da ‘manipulação’ da cena real utilizando apenas o foco e o enquadramento escolhido pelo fotógrafo.

FHC subserviente

A Folha, nos últimos meses, vem publicando, em sua capa e em seu primeiro caderno, grandes exemplos da modalidade. No dia anterior à foto de Chávez (edição nº 28.848, de 27/03/2008), a colocação lado a lado da foto da senadora Marisa Serrano (tirada por Alan Marques) com a da ministra Dilma Rousseff (por Jamil Bittar) fez uma cena digna das comédias slapstick dos anos 30-40.

A senadora, com os olhos esbugalhados ao tomar sorvete de tapioca, parece se assustar com a ministra, que aplaude ao morder uma caneta esferográfica. Até parece que a senadora era um gato preto de desenho animado, o ‘Coçadinha’, encarando o rato malvado e ídolo de Bart Simpson, o ‘Comichão’, que, no caso, seria a ministra.

A sequência de foto-charges nos faz lembrar da crítica da ombudswoman da Folha em 1999, Renata Lo Prete, sobre uma foto, também clicada por Lula Marques, que mostrava um FHC subserviente ao desafeto ACM na posse do segundo como ministro.

Análise e comentário

Na época, Prete afirmou que Marques ‘explica que se concentrou em FHC e ACM porque, em razão do atrito da véspera, eram eles os personagens, e não ‘mais um ministro tomando posse’’. Até aí, estou 100% de acordo. Defende a foto por achar que ela é a representação exata do que ocorreu na cerimônia, ainda que tenha sido batida antes do discurso em que o presidente recolheu o que havia dito’.

Sua ponderação de que ‘ainda que a ilusão seja parte do fotojornalismo, a discussão sobre seus limites merece ser feita’ parece não ir além da problemática em fazer isso quando a proposta editorial do jornal é ser ‘crítica, plural e apartidária’, conforme diz o seu Manual da Redação.

Não podemos dizer que a Folha não cumpre essas metas. Ela cumpre melhor que muitos outros veículos, principalmente nas áreas dos gêneros jornalísticos de caráter opiniativo (Editoriais, Tendências/Debates). No entanto, a foto estava na área noticiosa e, na página 31 do Manual, a Folha afirma que ‘é preciso evitar a tendência, muito comum, de transformar a análise da notícia em artigo ou comentário’.

Opinião e pluralismo

Ora, isso a Folha parece esquecer no dia-a-dia e o Mickey Chávez é um grande exemplo de como as notícias dos jornais podem emitir opinião disfarçada de objetividade. Isso se complica quando nos damos conta de que é uma foto, cuja sensação de realidade é muito maior do que o texto escrito.

Assim, as fotos da Folha viram foto-charges, dignas de aparecer na página A2 junto com a charge desenhada. A legenda e a notícia relacionadas a ela parecem pouco importar perto da caricaturização da situação. Tanto que, tirando o chapéu da legenda, o texto seguinte nada diz sobre o Mickey bolivariano que a Folha nos quer mostrar.

Isso fica mais claro ainda com as fotos de Serrano e Rousseff, tiradas em dois eventos distintos, que se separam das referidas matérias (sorvete de tapioca em Brasília e evento do PAC no Recife, respectivamente) para dar novo sentido à manchete da matéria principal: ‘CPI dos Cartões rejeita convocar Dilma’.

A Folha fica aqui entre ‘a cruz e a espada’: ou opta pela sagrada objetividade nos materiais noticiosos, ou vai à luta para afirmar que as notícias são críticas e com opiniões plurais. O que não pode é ficar indecisa usando foto-charges opinativas e afirmando pluralismo editorial e objetividade noticiosa.

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Pesquisador de Iniciação Científica em Jornalismo do Centro de Estudos da Metrópole (CEM-CEBRAP) e da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP)