Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ativismo do Supremo expõe omissão do Legislativo

A atuação do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, tem sido questionada pela mídia, que frequentemente o adjetiva pejorativamente de superpoder, supremocracia, rolo compressor da Justiça. Para muitos, a corte tem abusado de seu poder ao tratar de temas como fidelidade partidária, Lei da Imprensa, legalização do aborto, demarcação de terras indígenas, Sistema Único de Saúde, células-tronco. Esses assuntos, segundo a interpretação desses críticos, deviam ser discutidos no âmbito do Congresso Nacional. No entanto, se a função do STF é a de ser o guardião da Constituição Federal, corrigindo desvios para preservar o espírito republicano, suas intervenções nas pautas de interesse nacional são legítimas.

A superexposição do Supremo pode, no entanto, revelar um desequilíbrio na estrutura do sistema democrático. Montesquieu já afirmava que tudo estaria perdido se não houvesse harmonia entre os poderes. Ao que indica, o hiperativismo do STF se dá porque o Congresso tem deixado de legislar matérias importantes e se perdido em escândalos políticos e nas intermináveis CPIs convocadas para investigar esses escândalos.

Nos últimos tempos, os 11 ministros do STF têm ocupado o lugar de 513 deputados federais e 81 senadores na discussão de temas relevantes à sociedade. Ou seja, o Judiciário tem atuado no vácuo deixado pelos parlamentares. Se verdadeiramente existe a construção de um Estado do Judiciário em curso, a sua causa é a agenda equivocada dos parlamentares.

Fiscalizadora e transformadora

O exemplo mais recente foi a revogação da Lei de Imprensa da época da ditadura. O Congresso já poderia ter substituído o velho entulho autoritário por uma lei democrática. Omisso nos últimos 12 anos, deu margem a que o Supremo usasse as suas prerrogativas para atirar a velha lei na lata de lixo da história. Deixando, no entanto, uma lacuna a ser preenchida pelos parlamentares, que, se não fizerem, deixarão por conta dos juízos ordinários a interpretação das normas constitucionais sobre os crimes de opinião e o direito de resposta.

O ‘ativismo judiciário’ brasileiro, um conceito consagrado nos Estados Unidos no início dos anos 1970, é resultado direto da mudança do Poder Judiciário provocada pelos novos ministros do STF. O poder concedido pela Constituição de 1988 era utilizado timidamente pelos magistrados até há poucos anos, quando a nova composição do Supremo decidiu explorar o mandado de injunção. Previsto no artigo 5° da Carta, esse mandado é um instrumento à disposição do STF para ser usado sempre que a ausência de uma lei torne inviável o exercício dos direitos e liberdades individuais. Em linhas gerais, o mecanismo permite aos magistrados criar normas provisórias de maneira a suprir a omissão do Poder Legislativo. No entanto, do jeito que está configurado na Carta, não há limites para o seu uso.

A atuação dos 11 ministros do STF tem exposto, em razão disso, a ineficiência ou a omissão do Legislativo, perdido em pautas irrelevantes.

Com isso, vive-se a fase de uma nova Justiça, não apenas fiscalizadora, mas também transformadora. Hoje, a Justiça não se restringe a dizer se uma coisa é legal ou não. Ela exige, condiciona, determina que se faça isso ou aquilo, suprindo o papel originalmente atribuído aos parlamentares. Contudo, há um problema nisso: a instituição do Judiciário, pela tradição, tem mais poder do que o Legislativo. Por isso, costuma-se dizer que os ministros do Supremo têm sempre a última palavra.

A necessária harmonia dos três poderes

Os tribunais europeus têm cumprido tarefas políticas, como ocorre no STF. No entanto, os membros daqueles tribunais têm mandatos com prazo limitado, diferentemente do que ocorre por aqui, onde existe a vitaliciedade. Por outro lado, independentemente da existência do Conselho Nacional de Justiça, não há um efetivo controle social sobre os magistrados, ao contrário do que acontece quando se trata de um deputado ou senador, cujos mandatos podem deixar de ser renovados nas eleições seguintes.

Sendo assim, é necessário que o Poder Legislativo reencontre o seu caminho e recupere o seu protagonismo, em estrita harmonia com os interesses de seus representados.

Ao aceitar que entrem na agenda nacional assuntos como o mau uso das passagens aéreas dos parlamentares, a lotação de parentes em gabinetes e a omissão de castelos particulares na declaração do Imposto de Renda, o Congresso Nacional rende-se à pauta política dos partidos de direita, que tergiversam sobre os assuntos de grande interesse da sociedade. Esses problemas, que caracterizam desvios do regime republicano, devem ser resolvidos com rigor, mas no âmbito administrativo. Não tem sentido paralisar o país porque certos parlamentares concedem cotas de suas passagens para parentes ou amantes. A continuar nesse diapasão, sempre haverá quem defenda o fechamento do Congresso e o liberticídio, em nome da moral e dos bons costumes, cortinas de fumaça para acobertar os crimes relevantes do grande capital e do latifúndio.

Não há dúvida de que o Poder Judiciário tem se aprimorado e se aproximado dos interesses da população. E é muito bom que continue a corrigir os desvios, erros e omissões do sistema da democracia representativa. Não lhe cabe, porém, tomar o lugar dos congressistas, que são os verdadeiros representantes do povo, eleitos democraticamente e por tempo determinado. Tomara que o Congresso Nacional reassuma o quanto antes o seu papel para que se restabeleça a necessária harmonia na relação dos três poderes republicanos.

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Servidor público do TRT 10ª Região e coordenador-geral do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e Ministério Público da União no DF, Brasília, DF