Os jornais amanhecem outra vez na gangorra da crise financeira, agora alimentando a expectativa por uma nova votação do pacote de socorro proposto pelo governo dos Estados Unidos. A rigor, não há novidades a não ser o fato de que a rejeição inicial à proposta exigiu maiores esclarecimentos por parte das autoridades americanas, que também estão nos jornais.
Além disso, a imprensa brasileira começa a olhar para dentro, e revela com mais detalhes o nível dos riscos de contaminação por aqui. No entanto, passadas duas semanas da eclosão da turbulência, a imprensa nacional acumula erros e omissões na avaliação do episódio. A começar pela revista Veja, que anunciou há duas edições a chegada triunfal da cavalaria ligeira de George Bush, e teve que recuar para uma versão mais cautelosa dos acontecimentos já na edição seguinte.
Uma olhada nas coleções de jornais dos últimos dias mostra que a imprensa não conseguiu desprender sua atenção dos fatos mais imediatos, e com isso perde a oportunidade de oferecer aos leitores uma reflexão mais profunda sobre a crise.
Como uma boiada
Há muito que dizer em torno das dificuldades dos bancos americanos para entregar o que prometeram aos clientes. Mas os jornais apenas dão voltas na própria crise. Por exemplo, não há qualquer citação às relações óbvias entre os fatos no mercado financeiro, o financiamento das próximas safras agrícolas no Brasil e a questão do desmatamento.
A questão é parcialmente coberta pela Gazeta Mercantil, que investiu numa reportagem sobre as dificuldades de produtores rurais brasileiros para renovar seus financiamentos no exterior.
O pacote de ajuda aos bancos deve ir a votação ainda na quarta-feira (1/10), desta vez no Senado americano, onde a maioria já se manifestou favorável à aprovação. O processo deve se completar até o fim da semana, e, a julgar pelas reações noticiadas pelos jornais, a tendência é que os mercados se acalmem com a simples notícia da aprovação da operação de socorro, sem se perguntar em que condições o paciente vai sobreviver.
O mercado vai da euforia ao pânico, e vice-versa. Mas o mercado é irracional como uma boiada. A imprensa não deveria seguir a poeira, mas apontar caminhos.
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A miopia social da imprensa
O presidente do Instituto Ethos, Ricardo Young, lembrava na terça-feira (30/9), durante a cerimônia de entrega do 8º Prêmio Ethos de Jornalismo, um fato já observado por este Observatório em outras ocasiões: a imprensa não costuma fazer a conexão entre a turbulência que abala o sistema financeiro global e o estado do mundo.
Ricardo Young considera absurdo o fato de que os jornais ainda não tenham atentado para a evidência de que a crise não é apenas resultado da especulação financeira desenfreada, mas um sintoma claro de que o próprio sistema de negócios global está no caminho errado.
O presidente do Ethos lembrou que os 700 bilhões de dólares que se pretende entregar às empresas americanas ameaçadas de falência por gestão especulativa seriam suficientes para acabar com a fome e a miséria em todo o planeta.
Mais do que isso: o valor desperdiçado pelos especuladores, se fosse aplicado nas medidas corretas, poderia antecipar o alcance das metas do milênio com as quais o mundo se comprometeu.
Cassinos financeiros
Em 8 de setembro de 2000, portanto há oito anos, os 191 países membros da ONU firmaram o compromisso de acabar com a fome e a pobreza endêmicas, erradicar doenças que matam milhões todos os anos, promover a igualdade entre os sexos, tornar universal o ensino básico, reduzir a mortalidade infantil, melhorar a saúde materna, garantir a sustentabilidade ambiental e estabelecer uma parceria mundial pelo desenvolvimento.
A crise que assombra o mundo é uma oportunidade para a sociedade repensar a ciranda especulativa, que desvia recursos de empreendimentos sustentáveis para a insustentável irresponsabilidade dos cassinos financeiros.
Mas não se lê uma palavra, não se ouve uma frase a respeito dessa questão, que se coloca como o grande desafio da história da humanidade. É como se a imprensa estivesse sofrendo de miopia social.