Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Aula de jornalismo num bar do Flamengo

Noite dessas (23/6), liguei a TV para assistir, como sempre faço, ao programa Observatório da Imprensa. Alberto Dines tinha três entrevistados – o jurista José Paulo Cavalcanti Filho, o professor Muniz Sodré e o ex-ombudsman da Folha e do iG Mario Vitor Santos. Dos três, conhecia dois pessoalmente. Muniz Sodré foi meu professor num nos primeiros semestres do Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF. Mario Vitor, meu colega no mesmo IACS.


Ao longo da vida profissional, tive e tenho colegas e amigos contra e a favor do diploma ou de sua obrigatoriedade para o exercício profissional. Comecei em 1973, quando eram raros os jornalistas com diploma. Muitos nem tinham quaisquer outros diplomas.


Dos três, o que mais me surpreendeu foi o gênio da raça Mario Vitor Santos, nem tanto por aplaudir a decisão do STF, mas pela cara de pau de repetir a ladainha de que o diploma foi imposição do regime militar para restringir a liberdade de informação e por falsear a verdade quando afirmou que o jornalismo que se pratica hoje nas empresas tem baixa qualidade e, pior, que isso ocorre por culpa dos jornalistas que nelas trabalham, não dos patrões e seus paus mandados.


Lembrei de uma boa história logo depois de desligar a TV.


O furo do ano


Foi no tempo do governo Figueiredo, quando estava chegando ao fim o rodízio militar na Presidência da República. A situação era relativamente amena, com a anistia decretada e muita gente boa e ruim de volta do exílio. Qualquer zé mané falava mal do governo. Parecia que estávamos na democracia.


Era, se não me engano, um sábado. O Jornal do Brasil já havia fechado o primeiro clichê e, em vez de tomar o rumo de Niterói, eu e meu amigo e colega de editoria Osvaldo Maneschy estávamos a caminho do Lamas para encher a cara e falar mal do governo. Existe coisa melhor do que falar mal do governo, depois de 20 anos de ditadura?


Antes, paramos num boteco da esquina da Barão do Flamengo, onde hoje acho que é franquia do Devassa. Paramos porque reencontrei ali um ex-colega da UFF, um lourinho de fala mansa que enchia o saco de todo mundo no diretório acadêmico, pois era craque em manipulações.


O cara gostava de dar a última palavra sobre tudo, mas ninguém jamais o vira botando a mão na massa. Adorava mandar. Nem seus companheiros do MR-8 o aturavam muito, mas era um rapaz esperto e, por isso, acabou comandando o Diretório Acadêmico de Comunicação da UFF, o Daco.


Parei. Afinal, era um ex-colega. Apresentei-o ao Maneschy e batemos um papo rápido, coisa de 20 minutos, se tanto. O cara estava feliz da vida. Depois de alguns estágios na profissão, alguém tivera a idéia de chamá-lo para trabalhar em um novo jornal de esquerda que surgia. Ia para São Paulo fazer o que mais gostava: dar ordens.


Mario Vitor Santos tinha mais razões para se alegrar: sob seu comando, a Hora do Povo poria, dias depois, na primeira página, uma manchete pesada, que fizera seus leitores babarem com a informação de que encontrariam no jornal uma longa relação de personalidades, um monte de corruptos, que tinham contas numeradas na Suíça.


Eu e o Maneschy tivemos essa informação, portanto, em primeiríssima mão. E nos olhamos, meio espantados. Conta numerada, como o próprio nome diz, tem números, não nomes e sobrenomes. Porém, sabe-se lá! E não é que alguns nomes foram citados pelo Mario Vitor? Tinha de tudo: ministro da ditadura, deputado da oposição, empresário, banqueiro, o diabo.


– Quem é a fonte disso aí? – indaguei.


– O Partido Socialista da Suíça!


Maneschy caiu na besteira de perguntar como iriam provar a denúncia. E eu reforcei a pergunta do Maneschy, pois, afinal, aquilo poderia acabar dando cadeia. Três ou quatro anos mais velho do que o novo big boss do jornalismo panfletário, realmente fiquei preocupado com o cara, mesmo não fazendo parte de seu grupo político ou de seu círculo de amigos. E mais ainda depois que ele disse que a coisa tinha origem num dossiê de esquerdistas helvéticos, ou seja, um bando de doidos.


– Pelo menos algum dos caras acusados vai confirmar alguma coisa? – perguntei candidamente.


O torturador arrependido


Minha pergunta tinha sentido. Outro jornal nanico, o Em Tempo, publicara um listão com 400 ou 500 nomes de torturadores. As fontes eram suas vítimas. E mais: o número seguinte do Em Tempo foi ainda melhor porque um dos torturadores concordara em falar, confirmando que, sim, realmente havia participado daquilo tudo e estava arrependido. Detalhe: morreu assassinado depois do mea culpa, e dizem que por ex-colegas de batente.


Voltando ao boteco, foi bobagem perguntar se a história que a Hora do Povo publicaria tinha lastro. Levamos um esporro do futuro diretor do jornal. Na base da brincadeira, com aquele jeito manso que eu conhecia, fomos acusados de imbecis que ainda acreditavam na imprensa burguesa, na imparcialidade jornalística, nesse negócio babaca de ouvir o outro lado.


Foi uma bela lição de jornalismo que tive ali. Ainda bem que gosto de ouvir o outro lado. E no outro lado estavam alguns dos meus mestres de jornalismo da UFF, como o Antônio Theodoro de Barros e o Nilson Lage, que pensavam bem diferente daquele rapazinho radical.


Daí meu espanto por sua performance no Observatório da Imprensa na TV.


Claro que já estava careca de saber que há muito tempo as posições de Mario Vitor Santos haviam mudado, como sempre, radicalmente.


Tive ânsia de vômito ao ouvi-lo dizer – tudo bem que provocado pelo Alberto Dines – que convidaria prazerosamente o ministro Gilmar Mendes para dirigir uma publicação, quem sabe da Casa do Saber.


Ô cientista! Ô teatrólogo!


Disse mais o entrevistado: graças ao Supremo Tribunal Federal, teremos agora diretores de teatro, produtores de cultura, cientistas, advogados, escritores e outros mais bem preparados intelectualmente para que as redações de jornais, telejornais e o escambau possam dar um salto de qualidade.


Duvido muito, com o salário que mesmo os grandes jornais pagam, que gente ‘tão preparada’ aceite coberturas rotineiras. Imaginei logo o Cascon, na Reportagem do Globo, dizendo a uns e outros:


– Ô ‘Cientista’! Vai lá na Fiocruz que logo mais tem a coletiva da suína!


– Ô ‘Teatrólogo’! A escuta soube agora que uma menina de quatro anos levou uma bala perdida ali perto do Morro da Mineira! Vai lá pra ver se foi peça da PM ou do movimento!


– Ô ‘Data Vênia’! Inverteram a mão na Atlântica, tá a maior quizumba no calçadão. Vai lá e mete um habeas corpus no Eduardo Paes!


Estranhei muito que tantas sandices tivessem saído da boca de um professor de… Jornalismo. Pobres alunos da Faculdade Casper Líbero, onde nosso ex-radical deu ou ainda dá aulas…


Respeito os argumentos dos jornalistas de verdade, não dos burocratas de Redação, que são contrários ao diploma de Comunicação ou de Jornalismo, mas achei demais ouvir tantas sandices do entrevistado de Dines.


Posso estar enganado, mas não estou convencido de que alguém passe muito tempo nesta profissão, onde se ganha pouco e se trabalha muito, se não tiver realmente vocação. E quem tem vocação, ou acha que tem, procura um curso de jornalismo.


Evidente que ampliar o saber é fundamental. Então que faça também outros cursos, além de Comunicação Social ou Jornalismo. O de Economia é um ótimo exemplo. O de Direito, sei lá…


As figuras que conheço e conheci nesta profissão se orgulham de ser ou de ter sido repórteres, redatores, editores, diagramadores, repórteres fotográficos, etc. O jornalismo de ‘baixa qualidade’ nem mesmo tem mais ex-repórteres, ex-redatores, ex-editores. Agora o quente é ter passado de ombudsman, de ouvidor de portal, webwriter etc.


Até deitar regras tem limites. Não dá para respeitar opinião, seja lá qual for, de quem apagou do próprio currículo a passagem pelo jornal Hora do Povo (esse negócio de apagar história revela que o stalinismo continua em alta), onde aquela história do listão de contas ‘numeradas’ na Suíça deu mesmo cadeia.


Não para ele, é claro. Para outros, como o jornalista Ricardo Lessa. 

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Jornalista