O ano de 2008 termina com muitas promessas e poucas soluções na gestão da segurança pública brasileira. O recrudescimento da violência recheou as páginas de nossos jornais com notícias traumáticas e manifestações de indignação social. Várias pesquisas de opinião apontam ser a violência o principal problema enfrentado pelos brasileiros.
E o pior, um novo estudo aponta a relação entre mídia e violência real entre adolescentes. O trabalho, de pesquisadores da Rutgers University, em Newark, nos Estados Unidos, concluiu que ‘você é o que você assiste’, pelo menos quando se trata da população jovem. A pesquisa, que será publicada na edição de fevereiro de 2009 da revista científica Journal of Youth and Adolescence, mostra que mesmo levando-se outros fatores em consideração – como talento acadêmico, exposição à violência na comunidade ou problemas emocionais – a ‘preferência por mídia violenta na infância e adolescência contribui significativamente para a previsão de violência e agressão em geral’ nos participantes do estudo. A relação entre violência na mídia e comportamento violento tem sido reconhecida por especialistas nos últimos 40 anos. Clique aqui para mais detalhes.
Ineficiência, corrupção e arbitrariedade
Uma breve retrospectiva da hiper-exposição da violência na mídia brasileira, em 2008. Em 29 de março começava um caso que comoveu nosso país: Isabella Nardoni, de 5 anos, foi atirada da janela de um prédio na cidade de São Paulo. A brutal morte da menina foi apenas a primeira notícia de tragédias envolvendo crianças que chocaram os brasileiros neste ano. João Roberto, de 3 anos, foi morto em uma troca de tiros, no Rio de Janeiro. A adolescente inglesa Cara Marie Burke foi esquartejada, em Goiânia. Em Curitiba, Rachel Genofre, de 9 anos, foi estuprada e seu corpo encontrado em uma mala. Em outubro, a adolescente Eloá Pimentel morreu com um tiro na cabeça, depois de uma desastrada operação policial e após ter sido mantida refém por cinco dias pelo ex-namorado. Chacinas, em várias partes do Brasil, mortes de civis em operações policiais e violência nos cárceres também apareceram com freqüência nos noticiários.
Esses foram os dramas visíveis. Inúmeros outros não apareceram na mídia, mas certamente evidenciam o nível de violência no qual estamos submersos.
Estudos recentes têm apontado quedas nos indicadores da criminalidade violenta, principalmente nas grandes cidades. Mas nossos números são tão vergonhosos que qualquer comemoração seria um sarcasmo: temos uma das polícias mais violentas do mundo; ostentamos índices de homicídios comparáveis aos de países em guerra; nosso sistema judiciário é um dos mais seletivos; o sistema prisional é marcado pela ineficiência na recuperação dos presos, pela corrupção generalizada e todo o tipo de violência e arbitrariedade.
Estratégia da força
Portanto, a diminuição nos indicadores de crimes é mero engodo. Há evidente naturalização da violência em nossa sociedade e certa banalização da vida humana. Podemos nos vangloriar, por exemplo, de que uma cidade como Belo Horizonte – considerada como uma das capitais brasileiras mais seguras –, fechará o ano com uma taxa de cerca de 30 homicídios por grupo de 100 mil habitantes? Em Nova York, que já foi uma cidade violenta, esta taxa gira em torno de oito assassinatos para cada grupo de 100 mil pessoas.
Para responder ao recrudescimento da criminalidade presenciamos uma série de medidas reativas, tanto no plano nacional como nos estados. Em sua quase totalidade, essas medidas enfatizam o aumento do poder punitivo do Estado, simplificando sem resolver e, ao mesmo tempo, restringindo as noções de direitos e de cidadania.
Um bom exemplo desse tipo de recrudescimento do aparato repressivo é a estratégia utilizada pelos governos federal e estadual, no Rio de Janeiro – que vem sendo amplamente divulgada –, de ocupar as favelas usando, em alguns casos, exclusivamente a força policial. Os resultados se concretizam em inúmeros danos para a comunidade e para o poder público, como, por exemplo, o aumento da letalidade da ação policial. Assim, os custos econômicos e sociais desse tipo de operação dificilmente são compensados.
Remendos não foram suficientes
O argumento de melhorar as condições objetivas da segurança pública nesses locais, no futuro, em detrimento da segurança e do bem-estar dos próprios moradores, no presente, é questionável. Primeiramente, porque o poder público não tem efetivas garantias do êxito de suas ações (nem no presente, muito menos no futuro); segundo, porque geralmente a estratégia adotada nesse tipo de ação é altamente belicosa, tendo em vista o aniquilamento, a qualquer custo, do inimigo e, assim sendo, o nível de vitimização de inocentes é extremamente alto – ademais o Estado não existe para matar, nem mesmo o maior dos criminosos; e mais, todos os estudos demonstram que políticas de segurança pública exitosas dependem de ações permanentes, envolvendo a participação efetiva da sociedade civil – que deve ser parceira, e não simplesmente objeto da ação – e, finalmente, porque os fins (por melhores que sejam) nunca devem justificar os meios (principalmente quando se põe em risco a vida de milhares de pessoas).
O sistema de justiça criminal brasileiro está edificado sobre uma estrutura injusta e discricionária. Efetivamente, entendemos que não é possível – nas bases atuais – resolver os problemas da segurança pública com reformas pontuais nas polícias, no Judiciário, no inumano sistema prisional. Ou seja, quaisquer reformas, por melhores intenções que as fundamentem, são insuficientes para corrigir os vícios originários desse sistema perverso. Idealmente, seriam necessárias modificações estruturais que levassem em conta a nova ordem social e política brasileira – a partir da prevalência dos princípios dos direitos humanos.
É evidente o fracasso dos governos (nos vários níveis e dos três poderes) no encaminhamento de soluções efetivas para a melhoria das condições objetivas da segurança pública. Nos últimos anos, os remendos (apesar de necessários) não foram suficientes para estancar as barbáries que se abateram sobre a sociedade brasileira.
Perspectivas promissoras
Somente com a participação ostensiva da sociedade civil, pressionando por mudanças substanciais na arquitetura e na gestão da segurança pública, poderemos construir novos e modernos paradigmas para uma política pública menos excludente e mais humana, na segurança. A chamada segurança-cidadã.
A segurança dos cidadãos é, em si mesma, uma questão que inclui os direitos e garantias fundamentais, e não seu limite. Portanto, ao tratarmos da segurança pública como direito de cidadania, falamos na centralidade das políticas sociais e no aprimoramento institucional das agências que cuidam da defesa social. É fundamental repensar o lugar e as condições em que as forças de segurança se inserem na nossa sociedade.
Enquanto as reformas estruturais não chegam, são impostergáveis as modificações na gestão dos presídios brasileiros, marcados pela corrupção, violência institucional, superlotação e ineficácia. Uma discussão nacional urgente é sobre a desconstitucionalização da gestão policial no Brasil. Cada estado seria autônomo para gerenciar suas polícias e adaptá-las às realidades locais. Ademais, mecanismos de controle da atividade policial, como ouvidorias de Polícia independentes e controladas pela sociedade, precisariam ser reforçados e ampliados. A corrupção do agente público amplia, sobremaneira, a criminalidade e a institucionaliza. Em certa medida, corrupção policial e crime organizado se retroalimentam.
O Poder Judiciário e o Ministério Público podem colaborar, e muito, para evitar que o crime confronte o Estado Democrático de Direito. É fundamental que as modificações na legislação penal não se limitem no generalismo legal, mas contemplem as especificidades que surgiram com as novas modalidades de criminalidade urbana. E, ainda, o Ministério Público e, principalmente, o Judiciário, devem sair de seus castelos e exercer a Justiça com equidade.
Por fim, 2009 chega com uma promessa: no novo ano teremos uma grande oportunidade de começar a mudar esse macabro jogo da insegurança pública. Acontecerá a primeira Conferência Nacional de Segurança Pública, ocasião na qual se poderão substituir os muitos remendos que vêm sendo costurados nos últimos anos na colcha podre do sistema de justiça criminal brasileiro. Unicamente com reformas profundas nas polícias, no Judiciário e no sistema prisional, teremos perspectivas de efetiva diminuição da violência e criminalidade em nossas cidades e no Brasil.
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Integrante do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG e Núcleo de Direitos Humanos da PUC Minas