Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Bandeira que carece de sentido

Perguntas de um leitor operário

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilônia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima refulgente de oiro moravam os seus construtores?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a lendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Índias.
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os banquetes?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias,
Quantas perguntas (Bertolt Brecht)

As recentes declarações do presidente Lula sobre a imprensa e seu papel no processo eleitoral do Brasil parece que geraram certa inquietação nos setores que dominam esse setor. O chamado ‘Manifesto em defesa da democracia’, assinado por vários representantes da direita que controla a quase totalidade dos meios de comunicação do país, é a mostra clara da reação diante de um discurso que de alguma maneira manda um recado a esses grupos de poder.

As declarações do presidente começavam por cobrar uma verdade clara e objetiva dos meios de comunicação quando afirma que deveriam assumir uma postura clara diante do processo eleitoral, uma vez que demonstram uma preferência política e, ademais, utilizam mecanismos para favorecer a determinados candidatos neste processo, que claramente não são os candidatos do PT. Em entrevista ao portal Terra, o presidente também menciona a política monopólica dos grupos que controlam a comunicação do país, que se encontram nas mãos de um pequeno grupo de famílias e que, portanto, são os únicos que possuem os recursos necessários para fazer comunicação de massas.

A dimensão do papel da comunicação

Esses monopólios têm história. Nascem em processos repressivos – por eles e para eles. E, com a vista grossa dos governos democráticos pós-ditadura militar, ganham espaço no setor e se tornam um poder instituído dentro das estruturas do mesmo Estado brasileiro. Hoje, esses mesmos veículos ou grupos de comunicação social são os únicos que possuem permissão do Estado para produzir comunicação, com raras exceções. Esses mesmos grupos são os que definem políticas de comunicação nos sucessivos governos brasileiros, inclusive no governo Lula, atuando como agente político em favor de interesses contrários aos da grande maioria da população, ou mesmo dos profissionais da comunicação independentes.

Na quinta-feira, 23 de setembro, foi convocado no Clube Militar do Rio de Janeiro um evento com a participação de jornalistas dos grupos Globo e Abril para discutir o tema da liberdade de expressão no Brasil e na América Latina, frente às declarações do presidente. Uma vez mais, a apropriação desta bandeira de luta dos movimentos democráticos é usada pelos grupos que controlam este setor, em defesa de interesses privados.

Para alguns, de maneira surpreendente, as declarações do presidente Lula servem para impulsionar uma discussão sobre a liberdade de expressão e a que se refere esse termo, tanto para os setores que controlam a comunicação no Brasil e no mundo, quando para os militantes da democratização desse recurso.

Para tal discussão, é conveniente considerar o trabalho de investigação realizado pelo comunicólogo espanhol Vicente Romano, intitulado A formação da mentalidade submissa. Neste trabalho, Romano apresenta estudos nos quais aponta que aproximadamente 65% dos conhecimentos e informações são adquiridas diariamente através da televisão. Esta afirmação permite entender a dimensão do papel da comunicação social, em todas as suas formas de mídia, na formação dos indivíduos sociais.

Dois mil veículos de comunicação

Determinado este rol desempenhado pela comunicação social, a liberdade de expressão não pode ser entendida como uma carta branca usada pelos grupos de poder, acima das leis, ou da vontade da democracia em geral. A liberdade de expressão tem menos a ver com a liberdade de dizer ou fazer o conveniente com essas ferramentas e mais com a possibilidade real que têm os diversos setores que compõem uma sociedade complexa e desigual como o Brasil de se expressar. Cito parte do texto de Vicente Romano em tradução livre do espanhol: ‘Liberdade de expressão para todos carece de sentido se não existe a mesma liberdade de acesso aos meios para todos. Em última instância, o objetivo do ensinamento dos meios consiste (ou deve consistir) em capacitar os usuários dos mesmos para utilizar as possibilidade de expressão na articulação dos seus próprios interesses e motivá-los para que participem de modo consciente no processo de intercâmbio de conhecimento.’

Atualmente, os meios de comunicação controlados pela oligarquia, seja no Brasil ou em qualquer parte do mundo, criam uma matriz de opinião sobre a liberdade de expressão, associando esta importante bandeira, a uma espécie de licença para desempenhar um poder, ademais monopólico, e se consolidar como um poder instituído, acima de leis ou norma vigentes.

Um exemplo claro desta apropriação indevida e vazia de sentido desta bandeira de luta é a Venezuela. Sem entrar em méritos de comparação entre governos ou realidades deste país com o Brasil, somente nos últimos oito anos mais de dois mil veículos de comunicação foram criados por organizações sociais, de bairro, coletivos de comunicação comunitária, alternativa, livre, entre televisoras, rádios, jornais impressos e websites informativos. Foi dada a possibilidade, através de políticas públicas, de que a sociedade em geral, incluindo os diversos setores sociais, componha a comunidade de meios formadores da opinião pública. E mais, grupos não controlados pelo governo, distribuídos desde os setores mais progressistas aos mais reacionários.

Expectativa e desconforto

Ainda assim, a oposição, ou os setores oligárquicos da Venezuela ainda controlam mais de 80% do espectro radioelétrico do país, ou seja, ainda possuem a maior soma de poder midiático, com forte influência na sociedade em geral.

Mas bastou em 2006 o governo venezuelano fazer cumprir as normas e leis vigentes e aplicar o peso da justiça em um meio de comunicação privado, dos mais importantes do país, para que toda a discussão sobre a liberdade de discussão fosse uma vez mais utilizada pelos grupos de poder, com total carência de conteúdo ou sentido. A Rádio Caracas de Televisão, RCTV, perdeu a concessão pública outorgada pelo Estado venezuelano, quando atentou contra este mesmo Estado, regido por uma constituição democrática, e organizou um golpe de Estado em abril de 2002, contra o governo do presidente Hugo Chávez.

Nenhuma das razões pelas quais deve fundamentalmente passar a discussão sobre a não-renovação da concessão pública de RCTV é mencionada ou discutida pelos meios de comunicação controlados pelas oligarquias. Uma vez mais, a liberdade de expressão é entendida, e passada adiante, como uma imunidade auto-concedida pelos meios.

O chamado ‘Manifesto em defesa da democracia’, apresentado e defendido pelos porta-vozes da direita, é uma burla ofensa contra os interesses democráticos, contra qualquer possibilidade de revisão, ou discussão, do que deve ser uma estrutura de financiamento, e redistribuição dos espaços de comunicação de massas no Brasil. Ou mesmo da aplicação das leis já existentes, uma vez que esses mesmos grupos de poder infringiram mais de uma vez as regras da democracia, apoiou governos repressivos, foi cúmplice dos milhares de assassinatos e torturas praticadas pelos governos militares, e continua extrapolando as competências que lhes corresponde e atentando contra a democracia e o Estado de direito.

O que se dará depois das recentes declarações do presidente Lula, ou de uma possível vitória da candidata do PT nas próximas eleições – o que também significaria uma contundente derrota da extrema direita neoliberal, apoiada pelos grupos que controlam a comunicação no país –, é algo que cria certa expectativa nos setores progressistas e um forte desconforto da oligarquia midiática do país.

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Jornalista, residente em Caracas, Venezuela, onde trabalha para o Coletivo de Comunicação Alternativa Depana e para o canal de notícias internacional Telesur