O golpe da moeda podre em curso, aplicado pelos bancos centrais, e a corrida dos especuladores aos fundos do banqueiro Daniel Dantas, do Opportunity, diante da derrocada do chefe, são ensinamentos altamente didático-pedagógicos para os jornalistas de economia entenderem criticamente o capitalismo nesse início de século 21. Dantas e os BCs praticam a arte do despistamento e da desmoralização das moedas. São parteiros da anarquia monetária que favorece a emergência socialista, como disse Lênin.
Enquanto isso, cuidam, principalmente, de manter a cabeça da grande mídia nos pressupostos econômicos que comandavam o capitalismo no século 19, evitando que ela entre, ainda, no século 20, quanto mais no 21.
Por isso, o poder midiático não leva em consideração que o Estado se transformou em capital e passou a ser o terceiro (D3) componente do processo econômico, ao lado da produção (D1) e do consumo (D2), dinamizando a única variável econômica verdadeiramente independente sob o capitalismo, segundo Keynes: a oferta da quantidade de moeda na circulação capitalista.
Os bancos centrais e seus filhotes, como o banqueiro Daniel Dantas, que dizem ser um gênio da matemática financeira, aluno predileto do ex-ministro Mário Henrique Simonsen, são excelentes professores, no sentido de ensinarem a ler a economia pelo olhar do dinheiro e não pelos olhos da ideologia, idéias deformadas pelos vassalos do monetarismo, como alertava Marx.
Comentaristas viajam
Os ensinamentos desses mestres ajudam a destravar truques mentais neoliberais que obstaculizam a visão mais clara sobre o real funcionamento do sistema, sem as peias ideológicas espalhadas pelo capital em sua sensacional esperta sabedoria.
O que o banqueiro-economista Dantas e seus assemelhados, os presidentes dos bancos centrais, estão demonstrando? O oposto do que é pregado pela teoria econômica. Dizem eles que a inflação é um fenômeno monetário. O que fizeram? Encharcaram a praça de dinheiro sem lastro, sancionando políticas creditícias suicidas, imprudentes, enquanto, por intermédio da grande mídia, ditavam regras de bom comportamento aos países, especialmente, os emergentes.
Os olhos da fantasia que dominam o pensamento midiático destacam que esse lado ruim do capitalismo precisa ser saneado para dar espaço maior à produção e o consumo. Como? A produção e o consumo, no livre jogo do mercado, não suportam ficar de pé senão com a muleta do Estado capital por perto, irrigando as cabeceiras.
Se essa característica nova do capitalismo, no pós-neoclassismo econômico dezenovecentista, tornou-se excessivamente complexa, para continuar assegurando a reprodução do capital, querer resolver as complexidades, apenas, no discurso, é desconhecer os parâmetros da própria realidade. Nesse sentido, os comentaristas em geral, salvo honrosas exceções, viajam.
O estouro da boiada
O capitalismo sob o domínio da moeda estatal está, em escala internacional, sob impasse, aprofundado por aqueles que deveriam ser os comandantes do barco, os presidentes dos bancos centrais. Seus filhotes, como Daniel Dantas, são as expressões legítimas do processo. Comandam os bastidores dos governos – executivo, legislativo e judiciário –, influindo na máquina estatal para usufruir o maior poder que ela detém no processo de reprodução do capital: o domínio da sua capacidade de aumentar a oferta de moeda na economia, para iniciar o processo produtivo e especulativo, interativamente.
A imprensa não está se ligando na decadência da moeda norte-americana como fator de desestabilização geral. A falência dos bancos, nos Estados Unidos, suscitaria grandes matérias, grandes debates, grandes decisões, se o pensamento crítico dialético predominasse nas redações, e não o mecanicismo acrítico e alienante. Ligado ao capital externo norte-americano e europeu, o poder midiático estaria diretamente ameaçado se os aliados sucumbirem na crise bancária que está em curso, jogando cotações dos ativos para baixo, selvagemente.
Os barões da imprensa deveriam ler mais Marx. É o melhor professor de capitalismo, que, no século 20, foi seqüestrado pelos barbudinhos de Moscou e demonizado, injustamente, no ocidente, como disse Delfim Netto. As grandes crises capitalistas, diz ele, dão-se sempre a partir das crises monetárias desde que o ouro da América iniciou, na Europa, o processo inflacionário, no século 18. Elas começam no centro, impulsionadas pela sobreacumulação de capital, e descambam para a periferia em busca de salvaguardas. O dinheiro que abarrota o centro tem que ser escoado para a periferia em forma de dívida externa. A dívida externa, conseqüentemente, conclui, representa instrumento de dominação internacional. Num primeiro momento, ela dinamiza a economia; no segundo, cria insuficiência relativa de demanda; no terceiro, promove estouro da boiada.
Novo modelo monetário?
Edwar Amadeo, em artigo no Valor, fez excelente análise sobre as reviravoltas dos ciclos capitalistas, desde final do século 19 até início do século 20, para concluir que a derrocada neoliberal, presente, que repetiu contexto semelhante ao predominante no início do século 20, faz refluir o pensamento nacional à necessária busca de coesão interna como auto-defesa contra a anarquia geral externa, dada pela crise monetária desestabilizante.
Nesse ambiente, o comportamento midiático converge em escala global. Busca conforto na mentira para se aconchegar. Na reunião dos oito grandes, no Japão, onde os cinco emergentes compareceram, para aprofundar críticas e reivindicações, a completa ausência da discussão sobre a desvalorização do dólar, como responsável pela desestabilização geral dos preços, representou a confirmação da fuga do principal para dar espaço ao aparente.
O assunto não interessa àqueles que poderão ser responsabilizados pelas pressões inflacionárias desencadeadas pela crise de crédito nos Estados Unidos, ou seja, os próprios bancos centrais, tidos como os guardiães da moeda.
Keynes sabia da importância da mentira: ‘Precisamos fingir para nós mesmos, por mais cem anos, que o que é útil é verdadeiro. Se deixa de ser útil, deixa de ser verdade.’ Eis a ideologia utilitarista. As bases do utilitarismo estão sendo roídas, no terreno onde os presidentes dos bancos centrais, chancelados por seus líderes políticos, cometeram o erro do laxismo monetário para manter a reprodução capitalista especulativa. Estão perdendo a utilidade para consumo externo. Novo modelo monetário à vista?
O imaginoso mercado de derivativos
No meio da mentirada global emanada das reuniões dos grandes, o que fica evidente é que o latente é que é a verdade.
Quem ganha com a desvalorização do dólar, com o golpe da moeda podre? Claro, os Estados Unidos.
Quanto mais o dólar se desvaloriza, mais desvalorizada fica a dívida pública interna norte-americana, mais baratos se tornam os títulos de Tio Sam, espalhados na praça mundial.
Não seria o caso de a grande mídia analisar por que o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, na Era Lula, desdolarizou a dívida pública interna brasileira em quase 40%?
Daniel Dantas é aluno dileto da escola dos formadores das cabeças que predominam na direção dos bancos centrais. Ele fez curso superior na escola financeira da Nova República, comandada pelo Consenso de Washington. Aqui, Dantas captou o mandamento principal favorável às privatizações e foi, com sua excepcional inteligência, abrir picadas.
Havia dobrado o sinal para os países capitalistas periféricos: não poderiam mais lançar mão do keynesianismo para bancar o crescimento via inflação. Era preciso esvaziar o poder financeiro estatal das economias emergentes ultra-endividadas, depois da crise monetária dos anos de 1980, decorrente, também, da desvalorização do dólar.
Os banqueiros centrais comprovaram, na crise do subprime, detonador do mercado imobiliário e raiz da explosão inflacionária global, que Dantas é o modelo ideal do capitalismo como forma de reprodução da riqueza no ambiente globalizado da economia basicamente financeira.
O ensino é cristalino: máximo estímulo à imaginação criativa, exposta à larga no imaginoso mercado de derivativos.
Realidade virou ficção
Uma coisa deriva da outra, que pare outra, indefinidamente. Lastro? Um crédito caça outro crédito, que abre outro crédito, que se torna garantia de lançamento de mais crédito e por aí vai. Corrente da felicidade. Assim foi na crise de 1929. Assim é na crise atual.
A lenda diz que o velho patriarca dos Kennedy correu à bolsa na véspera do crash porque o menino que engraxava seu sapato sabia na ponta da língua, naquele dia, todas as cotações da bolsa. Apavorado, vendeu tudo e se salvou do incêndio. Foi ganhar dinheiro no contrabando com a lei seca, como destaca Seymour Hersh em O lado negro de Camelot. Estaria, certamente, agora, jogando em gado e minérios, no Brasil, como faz Daniel Dantas, depois que o mercado especulativo começou a perder o pique da banburragem nas águas da sobredesvalorização do dólar.
Os bancos centrais se revelaram extremamente irresponsáveis, como irresponsáveis são os comentários elogiosos da grande mídia às suas ações, ao longo dos últimos anos, e as armadilhas financeiras montadas pelo banqueiro Dantas para reproduzir o capital dos que acreditam nas suas jogadas financeiras ousadas, devidamente, multiplicadas pela sua mente matemática derivativa.
Hegel disse que a matemática é uma ciência que se desenvolve no exterior da realidade, não podendo determiná-la. Será? No mundo da moeda sem lastro, a realidade virou ficção a partir da criação matemático-derivativa-monetária-dantista.
Anarquia completa
Os bancos centrais e seus filhos, tipo Daniel Dantas, os mais cultuados pelo poder midiático, como modelos de comportamento exposto didaticamente nas coberturas jornalísticas, revelam-se, agora,demônios da inflação.
O comportamento dos BCs é o mesmo comportamento de Daniel Dantas. Nada de prudência. Nada de equilibrismos. Pelo contrário. Tudo desequilibrado. Não acreditam nas teorias que espalham para a periferia capitalista consumir nas páginas e telas da grande mídia. Praticam o oposto.
Encharcaram o meio circulante de moeda sem lastro e agora a moeda apodrece, aumentando os preços em geral, no compasso do encaixotamento geral do crédito. Complicou-se, extraordinariamente, a sustentação das trocas comerciais tendo o dólar como único equivalente monetário geral. Adeus credibilidade.
Dantas, o ícone financeiro neoliberal da Nova República, representou o gênio da raça brasileira, nesse ambiente em que a matemática financeira comanda o espetáculo da multiplicação de pães, sob o bumbo da grande mídia.
Nessa batida, os editorialistas buscam algum conforto na imaginação de que nesse mundo o imprudente é que se lasca.
O poder midiático segue o conselho dos bancos centrais: não convém mergulhar, jornalisticamente, nos intestinos do sistema, afetado seriamente pela crise bancária em curso, cuja característica é a completa anarquia do mercado de papéis derivativos.
Bode expiatório
O mercado de derivativos, em crise global da moeda estatal inconversível-keynesiana, nesse momento, é isso, Daniel Dantas, gênio da raça, em implosão planetária. Neo-big-bang.
Malthus foi estigmatizado porque disse a verdade cristalina. A demanda governamental – D3 –, expressa em desperdícios crescentes e ineficientes, ressaltou o genial economista-pastor, são indispensáveis como contraposição à excessiva eficiência do setor privado, movido pela ciência e a tecnologia a serviço do aumento da produtividade. Como esta aumenta a oferta relativamente à demanda, sinalizando deflação, a inflação, o seu oposto, seria a solução, a ‘unidade das soluções’, como completou Keynes.
Para horror da grande mídia, Estado eficiente ao lado de setor privado eficiente não é combinação que assegura reprodução sustentável do capital. Pelo contrário, argumentava Malthus em suas inumeráveis cartas trocadas com Ricardo.
A moeda sem lastro é a arma do Estado, necessariamente, ineficiente, recheado dos daniel dantas, indispensável à reprodução do capital. Isso soa demonização. Não há moralismo. É a ordem das coisas no mundo do capital. O concerto dessa sinfonia capitalista é alterado apenas pela explosão de suas próprias contradições.
Condenar Daniel Dantas pelas jogadas financeiras espetaculares é adotar posição moral, como se a imoralidade não fosse a ordem das coisas no contexto da reprodução do capital que passou a prescindir do trabalho (Rifikin, O fim dos empregos, ed. MB). Ele é o duto pelo qual passa a imundice, não a raiz da imundice. Torna-se, por isso, bode expiatório, como fizeram com os judeus, condenando-os por que sabiam ganhar dinheiro espetacularmente nos contextos inflacionários. A inflação teria sido culpa dos judeus ou de Hitler?
Implosão de convicções furadas
A derrocada da estratégia dos bancos centrais é o plano geral da derrocada menor do banqueiro Daniel Dantas. Ambos são frutos legítimos de uma mesma ordem econômica, pautada na financeirização global, em que o capitalismo perde suas bases na produção, para fincá-las na especulação.
Veja o caso brasileiro: do total da renda nacional, 70% são rendimentos do capital; 30%, apenas, correspondem aos ganhos dos salários, segundo pesquisa anunciada pelo economista nacionalista Márcio Porchman, do IPEA. Claro, 30% dos salários não são suficientes para remunerar 70% do capital. Este, por isso, descola-se da produção para a especulação. Precisa esquentar dinheiro.
O estouro de Daniel Dantas, assim como o estouro do subprime imobiliário norte-americano, impulsionado pelo excessivo laxismo dos bancos centrais, nada mais é do que implosão das convicções monetaristas neoliberais furadas. Os bancos centrais, com seus subprodutos, embalagem DD, jogaram o capitalismo a caminho de completa anarquia monetária. Lênin e Trotski devem estar batendo palmas.
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Jornalista, Brasília, DF