Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Bingo or not to bingo

O marechal Castelo Branco, quando tratava de ‘generais de pijamas’ (reformados), gostava de socar-lhes na fuça uma definição, a saber: vivandeiras alvoroçadas a rondar os bivaques em que habitam os granadeiros. Hoje temos outras vivandeiras específicas: promotores aposentados, procuradores aposentados e juízes aposentados.

Se o poder é o sexo dos velhos, como notou o poeta Paulo Leminsky, qual o barato quando o poder escorre das mãos, com a vinda indesviável dos cabelos nevados? O barato é ir buscar poder jornalístico (isto é, persuasivo) no atalho facilitário da internet, de preferência nos sites de busca mais repassados – por que, afinal de contas, que preguiça dá fuçar no site do Supremo Tribunal Federal, não é?

Esse comportamento octogenário gerou nas duas últimas semanas o pior crime que a imprensa pode cometer: condenar. Como, no caso, promotores, procuradores e juízes aposentados ainda trazem fumos e ganas do in dubio pro societate (vulgo condene-se), transferiram freudianamente este comportamento regimental para a imprensa. Ou seja: a cada linha desses senhores lê-se uma entrelinha a vocalizar um sonoro ‘veja como esses suspeitos são bandidos de verdade’.

Estamos falando do caso dos bingos. As vivandeiras prodigalizaram, nos últimos 15 dias, linhas e linhas desse melange, singularmente escritas com pompas de ‘veja com quem está falando’. Esse fator ‘otoridade’ (autoridade), quando estudado de perto, indicará talvez, no caso dos bingos, o melhor argumento de que dispõem os que defendem o diploma de jornalismo. Ou seja: jornalismo é coisa para jornalistas.

Tudo isso porque vivandeiras crucificaram taxativamente investigados no caso dos bingos. Estamos falando dos irmãos Philippeddu, de Waldomiro e Johnny Ortiz. Tudo o que saiu na imprensa, sobretudo vindo da pena das vivandeiras, nas últimas semanas, sustentava que os quatro eram das máfias corsas e italianas e espanholas.

Em primeiro lugar, cabe destacar que o objeto da negociação na citada fita de vídeo não se trata de bingo, mas de loterias. O bicheiro Carlos Ramos jamais teve vínculo com o bingo. Seu ramo é o de softwares lotéricos e seu objetivo era conseguir a fatia de mercado dominada por sua concorrente americana, a Gtech.

Em outras palavras: apontou-se como criminosos empresários mostrados, em 1999, como suspeitos. Omitiu-se que, nos anos seguintes, entre o inquérito e o desfecho do processo, na Itália, essas pessoas foram excluídas do rol dos acusados, impronunciadas ou absolvidas.

Esses empresários, arrolados na carta rogatória italiana em 1999, tiveram sua atividade e suas empresas esquadrinhadas pelas polícias estadual e federal. Investigados e alvo de inquéritos, foram isentados de qualquer acusação pela absoluta falta de indícios em face das suspeitas levantadas.

Aposentadoria ética

Da Justiça italiana, os irmãos Ortiz têm as devidas declarações de que nada há naquele país contra eles, uma vez que os empresários apontados como seus parceiros foram absolvidos ou excluídos do processo aberto para investigar atividades criminosas relacionadas ao jogo.

Uma rápida consulta à internet poderia evitar erros primários. Os europeus François e Julien Filippeddu (ora citados como corsos, ora como franceses), apontados como os elos entre o Brasil e a máfia da Itália, não são considerados criminosos nem pela justiça italiana nem pela brasileira.

Bastava que as vivandeiras deixassem de consultar os repassados sites como Google e dessem uma pesquisada, de 15 minutos, na página do Supremo Tribunal Federal. O que as vivandeiras publicaram chega no máximo até o ano de 2000.

Este observador foi procurar alguém da ativa para comentar o assunto das vivandeiras alvoroçadas. No caso, o procurador da República Luiz Francisco Fernandes de Souza. Na sexta-feira (27/2), o procurador foi taxativo com este Observatório: ‘Todos são da máfia, não se iluda’. E remeteu ao observador um pedido de quebra de sigilo, elaborado por ele e pelo também procurador da República Guilherme Zanina Schelb. O documento é datado de 24 de janeiro de 2000. Foi endereçada à Juíza Federal da 10a. Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. Começa assim:

‘Inquérito n. 1999.34.00.033459-5. O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores que subscrevem esta petição, vem, mui respeitosamente, com base nos documentos que constam neste inquérito e no resumo de indícios abaixo exposto, requerer de Vossa Excelência a QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO da relação de pessoas que seguem arroladas. A exposição de razões que fundamenta o pedido segue, com grandes pormenores. Segundo documento do Sr. ORTIZ, que segue transcrito, o Brasil deve ter cerca de 5.000 bingos. Destes, cerca de 40% têm máquinas caça-níqueis arrendadas das firmas da família ORTIZ e ligados à Recreativos Franco. Esta família associou-se a vários membros de grupos mafiosos da Itália e obteve controle no mínimo parcial sobre o INDESP. O setor de bingos deve movimentar, em cálculos moderados, cerca de dois bilhões de reais por ano. Após demonstrar que a competência para tal crime cabe a um Juiz Federal e a um Polícia Federal, ficará demonstrada a ligação intrínseca entre grupos mafiosos italianos, cartéis colombianos, o jogo de bingo, suspeitas veementíssimas de corrupção e o jogo do bicho no Brasil. Além disso, manter máquinas de jogo de azar nos bingos é um crime especial criado pela Lei Pelé.’

Mesmo o parecer de Luiz Francisco sobre o caso é defasado. Despacho de 2002, assinado pela ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie Northfleet, respaldado em parecer da Procuradoria-Geral da República, declara que um pedido de prisão preventiva, feito anos antes, perdera seu efeito. ‘Diante da manifestação do Governo da Itália, no sentido de que não tem mais interesse na extradição do nacional italiano François Filippeddu, a prisão preventiva decretada não pode subsistir, motivo pelo qual revogo o respectivo decreto.’ O motivo da desistência, explica-se em outro trecho, é o fato de o envolvido ter sido absolvido, na Itália.

Outra consulta à página do STF mostra que Luiz Francisco também está errado. Vejamos:

‘PRISÃO PREVENTIVA PARA EXTRADIÇÃO Nr. 331

PROCED.: REPÚBLICA ITALIANA

RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE

REQTE.: GOVERNO DA REPÚBLICA ITALIANA

EXTDO.: JULIEN FILIPPEDDU

Petição/STF n. 155.418/2001 DECISÃO MANDADO DE PRISÃO – RECOLHIMENTO. 1. O Ministro de Estado da Justiça, Dr. Aloysio Nunes Ferreira, encaminha manifestação do Governo da República Italiana no sentido da ausência de interesse na extradiçã do nacional italiano Julien Filippeddu. 2. Recolha-se o mandado de prisão. 3. Arquive-se. 4. Publique-se. Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 2002. Ministro MARCO AURELIO Presidente’

O mesmo se aplica a outros personagens contra os quais se fazem graves acusações mas que, depois de insistentes investigações e meticulosos processos judiciais tiveram sua inocência reconhecida. Menos, é claro, por parte de pessoas que não têm qualquer compromisso com a verdade.

As vivandeiras alvoroçadas, que por preguiça e incompetência condenaram pessoas ao opróbrio, talvez não tenham sido tão pré-coerentes assim. Afinal de contas, a mesma linha de satanizar os suspeitos foi adotada, em amplo espectro, pelo Jornal Nacional. E que não seja visto isto como ponto negativo. As Organizações Globo souberam adotar uma técnica rara na mídia brazuca: enquanto um produto jornalístico afaga, o outro apedreja. Esta perversidade polimorfa teve o seguinte subtom: a tonitruante revelação da revista Época condenava o ministro José Dirceu à aposentadoria ética, enquanto o Jornal Nacional, usando os mesmos documentos vencidos das vivandeiras alvoroçadas, tentava meter a ‘culpa’ goela abaixo dos ‘mafiosos’ – uma sutil e ao mesmo tempo bizarra tática de tirar a culpa da cabeça do ministro Dirceu.

Globo & Papatudo

A título de esclarecimento, vale lembrar um episódio acontecido há dez anos. O então promotor e hoje deputado federal Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ) ganhara notoriedade da noite para o dia por conta da famosa ‘lista do Biscaia’, em que gente muito conhecida, sobretudo do mundo político fluminense-carioca, aparecia em lista de ‘doações’ organizada pelos chefões do jogo do bicho no Rio de Janeiro.

Apenas as Organizações Globo tinham exclusividade na divulgação do material belissimamente investigado pelo promotor Biscaia. O que arrancou, num espaço de 48 horas, declarações bombásticas, em uníssono conceitual, de gente tão diferente quanto o jornalista Janio de Freitas e o banqueiro do bicho Castor de Andrade.

Freitas disse num dia, numa reunião do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo. ‘A máfia italiana quer acabar com o bicho carioca’. Dois dias depois, e em público, o finado Castor de Andrade disse o mesmo para a imprensa. Este repórter, então, é escalado para passar dias no Rio para interpretar o que os dois oráculos (um do jornalismo, outro da malandragem) haviam dito.

Por intervenção do policial civil carioca Paulinho Queiroz (que seria assassinado a metralhadas quando passava por Vigário Geral), este repórter é levado às 3 da manhã na sede da Polinter, no Rio, para um encontro com os bicheiros Paulinho Andrade, filho de Castor, e Raul Capitão. Na cadeia, Paulinho Andrade promete dizer com documentos, na madrugada do dia seguinte, o que seu pai quisera afirmar quando falava de máfias italianas querendo acabar com o jogo do bicho brasileiro.

Na madrugada do dia seguinte, Paulinho Andrade entrega ao repórter um dossiê. Os documentos revelavam o seguinte: Arthur Falk, que então tinha o acordo do Papatudo com a Globo e a apresentadora Xuxa, teria convencido Roberto Marinho a implantar no Rio de Janeiro o jogo do bicho online. Para tanto, a concorrência imediata – o jogo do bicho tradicional – necessariamente deveria ser exterminada. A lista do promotor Biscaia caiu como uma luva, daí as massivas reportagens globais sobre o tema.

Paulinho Andrade entregou a este repórter um dossiê elaborado pela Kroll Associates (a maior empresa de investigações privadas do mundo), a revelar que a única empresa capacitada a fornecer as máquinas do jogo do bicho online era investigada pelo FBI, sob acusação de ser de propriedade da máfia de Chicago.

O jogo do bicho online não aconteceu. Paulinho e Castor de Andrade morreram. A sociedade Marinho-Falk foi desfeita. E a reportagem produzida para a Folha de S. Paulo acabou virando um relatório para o consumo da diretoria.

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Jornalista, autor de Falácia genética: a ideologia do DNA na imprensa (380 pp., Editora Escrituras, São Paulo, 2004)