Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Boletim IHU Online

‘A televisão é o veículo que informa a maioria dos brasileiros e deles esconde que é uma concessão pública. Além, disso, aos telespectadores lhes parece que ela chega sem custos, inibindo eventuais reclamações sobre a sua má qualidade. Esse é uma das opiniões do professor da Universidade de São Paulo e estúdios da televisão Laurindo Leal Filho. Graduado em Ciências Sociais pela USP, cursou o mestrado em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Sua dissertação teve o título ‘A cultura da TV’, e foi orientada por Octavio Ianni. É também doutor em Ciências da Comunicação, pela USP, título obtido com a tese ‘A universidade no jornal’, e livre-docente também pela USP com a tese ‘O modelo britânico de rádio e televisão: a convivência entre o público e o privado’. É pós-doutor pela University of London (UL), em Londres. Laurindo Leal Filho é autor de A melhor TV do mundo. O modelo britânico de televisão. São Paulo: Summus, 1997. Integra a ONG TVer (www.tver.org.br), um grupo de trabalho que reflete sobre a responsabilidade social e pública da televisão no Brasil, propondo-se a contribuir com elementos de reflexão sobre a qualidade da programação televisiva. Ele nos concedeu, por correio eletrônico, esta entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor definiria uma ‘comunicação democrática’?

Laurindo Leal Filho – As formas de comunicação que espelhem – em igualdade de condições – as diversas correntes de pensamento existentes na sociedade. Para isso é necessário que o Estado garanta aos setores menos privilegiados economicamente recursos e canais capazes de conduzirem suas idéias e valores.

IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre a comunicação no Brasil, especialmente a eletrônica?

Laurindo Leal Filho – Ela está brutalmente concentrada nas mãos de um número restrito de grupos políticos e econômicos que a usam em benefício próprio. Diferentemente dos meios impressos que circulam em canais privados (compra e venda em bancas ou por meio de assinaturas), os meios eletrônicos trafegam pelos canais públicos, outorgados aos concessionários pelo Estado, em nome da sociedade. São bens escassos e finitos, necessitando, portanto, de regulação e controle social, o que não ocorre no Brasil. A legislação que regula o setor é de 1962 (Código de Radiodifusão) e não dá conta mais das transformações tecnológicas vividas pelo setor e nem das profundas mudanças culturais ocorridas no País durante esse período. A comunicação eletrônica no Brasil atua num vácuo legal.

IHU On-Line – O senhor acha que a sociedade precisar exercer algum tipo de controle sobre os meios de comunicação? Como? Quais tipos de controle?

Laurindo Leal Filho – Sim, como ocorre em grande parte das democracias em todo o mundo. Por serem concessões públicas, a sociedade deve possuir instrumentos para controlá-las. Reino Unido, França, Alemanha, Portugal, Chile, Austrália são alguns países que possuem conselhos públicos de radiodifusão com poderes para fiscalizar e punir concessionários que infringem as regras de concessão, as leis do país e mesmo os que afrontam valores éticos e morais da sociedade. São órgãos que recebem as queixas da população, as analisam, chamam os concessionários para discuti-las e, se for caso, exercem o poder de puni-los.

IHU On-Line – Qual o papel da sociedade civil nesse debate? Ela está preparada para isso? Quando alguém abre uma torneira e sai água suja, por exemplo, sabe a quem reclamar e o faz imediatamente. Por que isso não ocorre com as programações de televisão, quando elas são de má qualidade?

Laurindo Leal Filho – Porque infelizmente no Brasil a absoluta maioria da população só se informa pela televisão e esta esconde o fato de ser uma concessão pública. E o que é pior, por aparentemente chegar a todos os domicílios sem custo para o telespectador, este não se julga no direito de reclamar do que é ruim. E para completar, com a falta de órgãos reguladores, não há a quem reclamar. Diferentemente do que ocorre com outras concessões públicas, como a água, a energia ou os transportes, por exemplo.

IHU On-Line – Como vem atuando a ONG TVer? Quais os ensinamentos resultantes dessa experiência? A ‘leitura’ que a população faz da televisão condiz com a expectativa de uma comunicação democrática?

Laurindo Leal Filho – A ONG TVer, ao colocar um site no ar e exercer a crítica pública da programação da TV, apareceu para os que a ela têm acesso como uma verdadeira tábua de salvação. Como disse na resposta anterior, a inexistência de um organismo institucional de controle faz com que muita gente, angustiada com a baixa qualidade da TV, busque a ONG TVer para desabafar. Além das denúncias publicadas no site, a ONG realizou algumas ações junto às emissoras e ao Ministério Público, exigindo que as emissoras respeitem pelo menos a lei (a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código do Consumidor – já que a lei de radiodifusão, como já disse, só protege os concessionários).

IHU On-Line – Por que os governos costumam colocar em segundo plano essas questões? Quais são os prejuízos sociais e culturais resultantes dessa apatia governamental?

Laurindo Leal Filho – As conseqüências são as mais nefastas e amplas possíveis. Entre elas destaco o perigo que esse pensamento único veiculado pela TV representa para a democracia. Seu poder é brutal, impondo políticas públicas e governantes quase sempre comprometidos com os interesses dos grupos que controlam os meios de comunicação. O caso do Rio Grande do Sul, com o monopólio da RBS, é emblemático e mostra a distorção informativa a que estamos submetidos. Isso para não falar na destruição das produções culturais não comprometidas com o mercado e com a imposição de gostos e valores quase sempre distantes das raízes culturais brasileiras.’



ENTREVISTA / GUILLERMO MASTRINI
Boletim IHU Online

‘Enquanto os meios eram privatizados, a academia discutia ‘recepção’’, copyright Boletim IHU Online (http://www.ihu.unisinos.br/), 3/05/04

‘Guillermo Mastrini, pesquisador argentino, destaca o descompasso teórico existente entre a produção acadêmica e a realidade dos meios de comunicação. Ele considera vital formular políticas de comunicação para revigorar os movimentos sociais e enfrentar a iminente hegemonia comunicacional dos interesses mercadológicos. Guillermo Mastrini é licenciado em Ciências da Comunicação pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e doutorando na Universidade Complutense de Madrid, Faculdade de Ciências da Informação, no Programa de Doutorado Aspectos Retóricos, Dialéticos e Políticos da Informação. É professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA) e co-diretor do projeto de pesquisa ‘A concentração da propriedade e a participação social nas políticas de comunicação: uma análise dos blocos regionais Mercosul, Nafta e União Européia’, desenvolvido pela UBA. Entre os seus textos está o artigo ‘Economia política da comunicação: uma contribuição marxista para a constituição do campo comunicacional’, com César Bolaño, publicado no livro Matrizes comunicacionais latino-americanas: Marxismo e Cristianismo. São Paulo: Editora Metodista Digital, 2002, organizado por José Marques de Melo, Maria Cristina Gobbi e Waldemar Luiz Kunsch. É o coodenador do boletim digital ‘Políticas y Planificación de la Comunicación’ (www.catedras.fsoc.uba.ar/mastrini). Sua entrevista foi concedida por telefone.

IHU On-Line – Qual é o sentido de discutir políticas de comunicação especialmente na América Latina, num cenário tão adverso social e economicamente?

Guillermo Mastrini – O conceito de políticas de comunicação sofreu uma evolução importante a partir dos anos 1980. Logo depois de todos os aportes feitos pela academia na América Latina, o desenvolvimento desse conceito, a partir dos anos 1980, centralmente dos anos 1990, sofre uma reorientação, volta-se a outras preocupações. Inclusive Pasquali disse que os termos políticas de comunicação’ se transformaram em dirty words , em malas palabras. Isso ocorre quase paralelamente a uma profunda mudança das estruturas dos meios de comunicação. Basicamente a partir de duas políticas, que são privatização e liberalização dos mercados, a abertura dos mercados para o capital estrangeiro. Durante toda a década de 1990 se verifica rapidamente uma forte concentração dos meios de comunicação. Ante esse panorama, creio que, mais do que nunca, é necessário retomar o pensamento em torno de políticas de comunicação. Frente à perda de possibilidades de pressão da sociedade e à transformação do mercado em praticamente a única possibilidade comunicativa, falar de políticas de comunicação se torna mais indispensável.

IHU On-Line – Esse debate está ao alcance da população, ela está preparada para compreendê-lo e intervir?

Guillermo Mastrini – Em geral, a população está mais preocupada com os conteúdos dos meios de comunicação do que com a política dos meios de comunicação, o que é um problema. Em geral, na sociedade latino-americana, há uma escassa preocupação com a política de comunicação, além do permanente desafio da academia de não isolar-se dos sujeitos sociais, não agir como uma vanguarda iluminada. Creio que isto é sumamente importante, talvez a aprendizagem mais importante que devemos extrair da outra etapa da política de comunicação, na década de 1970. A política funcionou claramente como uma vanguarda sem laços consolidados com os processos sociais que estavam ocorrendo. A batalha pela democratização da comunicação é fundamental, mas não é fácil. Creio que Brasil é um dos países onde a sociedade está mais comprometida – eu não diria muito comprometida – com as políticas de comunicação. São exemplos o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, todas as intervenções feitas em relação à Lei do Cabo, creio que aí há mais presença social nas discussões sobre políticas de comunicação. É insuficiente, mas é muito maior do que na Argentina.

IHU On-Line – O senhor defende o controle público da comunicação? Que papel cabe aos governos?

Guillermo Matrini – Isto é sumamente complexo. Nós, que éramos críticos do papel do Estado, terminamos pensando que o Estado deve intervir. Creio que há uma instância pública porque, frente ao avanço do mercado o espaço público- estatal é uma instância que amplia as possibilidades de participação em relação as atividades do mercado. Isto não quer dizer que devemos confiar exclusivamente nas políticas desenvolvidas ou vinculadas a partir do Estado. Creio que também os movimentos sociais devem gerar políticas próprias. Não sei se devemos seguir falando de políticas alternativas, porque o conceito de ‘alternativo’ deve ser revisado, ao menos. Acho que devemos tratar de políticas de comunicação como um todo, porque o conceito de ‘alternativas’ remete à idéia de que serão eternamente alternativas, e essa não é a idéia. Em algum momento deverão ser a própria comunicação.

IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre as críticas que intelectuais como Norman Solomon, Noam Chomski, Ignacio Ramonet têm feito à mídia? Elas conduzem a uma política de comunicação, contribuem para uma nova relação com os meios de comunicação?

Guillermo Mastrini – Acho que essas contribuições, assim como os debates sobre comunicação que ocorreram no Fórum Social Mundial , são importantes em termos de referência intelectual. Seguramente são preciosas e marcam a importância do tema. Entretanto, essas contribuições têm uma visão não de todo consubstanciadas com as teorias – isso não é um fenômeno específico das políticas de comunicação. Trabalham o tema ‘meios’ de maneira geral e creio que há um esforço para analisar o que se passa com o Estado, como o Estado foi cooptado e que alternativas podem ser pensadas desde os movimentos sociais para as políticas de comunicação, com uma perspectiva mais democrática. Creio que isso é muito importante como referência intelectual, mas acho que é preciso agregar-lhe substância.

IHU On-Line – Além do caso brasileiro, o senhor localiza em algum outro país, em outra região, movimentos para construir uma política de comunicação?

Guillermo Mastrini – Há um processo interessante na Venezuela. De grande complexidade, porque está permeado pela dinâmica política da Venezuela, que é extraordinariamente complexa. Está ocorrendo uma discussão sobre como democratizar os meios no momento em que os meios de comunicação estão participando, mais ativamente do que nunca, da vida política venezuelana, a partir do enfrentamento com o presidente Chávez. Há uma nova lei sobre os meios que, por exemplo, não conta com o apoio da academia venezuelana.IHU On-Line – Qual tem sido o papel da academia para a construção de uma política de comunicação?

Guillermo Mastrini – Em geral, creio que o tema começa a ser revisitado, volta-se a assumir a necessidade de discuti-lo, mas muito lentamente. O que ocorreu a partir dos anos 1990, com o aumento de concentração da propriedade dos meios, a privatização desses meios, em alguns casos com a entrada do capital estrangeiro, é completamente distinto do que ocorria nos anos 1970. E a academia continuou mais interessada no problema da recepção, no problema dos fenômenos antropológicos da comunicação, que são muito importantes, mas parece que isso em realidade não era mais a questão a atender. Creio que a partir do final da década de 1990, princípio do novo século, se está reativando a discussão, há muito trabalho por fazer, porque há um atraso teórico para analisar o tema. Temos que recuperar todo o tempo perdido. Nesse sentido, creio que os anglo-saxões e a escola francesa de regulação avançaram muito mais do que avançamos na América Latina.

IHU On-Line – Apesar desse descompasso teórico, historicamente esse debate não tem um bom acúmulo?

Guillermo Mastrini – Sim, claro. Exemplo disso é que uma parte importante do debate na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação recolocou, ainda que com diferenças, naturalmente, os debates que se seguiram em torno de Relatório McBride . O problema segue sendo a democratização da comunicação e quais são os mecanismos que têm a comunidade internacional para garanti-la. Talvez a diferença principal é que no debate de McBride, nos anos 1970, e princípio dos anos 1980, a discussão era sustentada principalmente pelos setores nacionais, e havia a confrontação entre distintos setores. Claramente, o bloco ocidental contra os países não-alinhados. Hoje, a presença de setores nacionais é menos importante e aparece centralmente o mundo empresarial. Contrabalançando essa presença aparecem, de maneira menos poderosa, setores da sociedade civil e as organizações do terceiro setor. Que, ademais, merecem todo um debate sobre as suas representatividades.

IHU On-Line – A Cúpula Mundial da Sociedade da Informação contribuiu para o avanço do debate?

Guillermo Mastrini – Na realidade, em Genebra não se resolveu nada sobre os temas conflitantes. O que se fez foi postergar o debate. Sobre os dois grandes problemas que são o acesso e a incorporação dos países pobres à chamada ‘sociedade de informação’, o que se fez foi postergar o debate para 2005. Não houve nenhuma resolução nesse sentido, o ‘triunfo’ do terceiro setor e da sociedade civil foi conseguir instalar o debate. Por isso é interessante ver como se retomam os debates que estavam presentes há algumas décadas, compará-los. Esse é um dos estudos que estou desenvolvendo.

IHU On-Line – Apesar recorrência dos debate, o tema da democratização sempre parece estranho aos governos. Isto se deve a um despreparo dos governantes ou ignorá-lo é uma prática deliberada?

Guillermo Mastrini – Há diferenças. Há governos que têm trabalhado bastante o tema da Cúpula. Em geral, na América Latina, há um certo retraimento, possivelmente pode-se chegar a conclusão que há outras prioridades. Mas creio que alguns governos da Europa, bem como o dos Estados Unidos, foram bastante preparados à Cúpula. Como também alguns setores da sociedade civil foram bem preparados. Mas em geral é correto dizer que para os governos latino-americanos o tema de políticas de meios e de comunicação e informação são um pouco mais distantes. Na América Latina o Brasil segue sendo um caso importante pois, por exemplo, está tentando desenvolver sue próprio modelo de televisão digital. É preciso ver se isso ocorrerá ou não, isso pressupõe o desafio aos três modelos hegemônicos, que são o norte-americano, o europeu e o japonês. Isto mostra que há uma visão estratégica do problema comunicacional que também, por suposto, se vincula a uma política de desenvolvimento econômico mais autônoma. Se vale a comparação, a Argentina já adotou o modelo norte-americano, enquanto o Brasil discute a possibilidade de criar uma tecnologia própria.’