Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Brasil entre os mais tolerantes? Mesmo?

No artigo ‘Nem amigos nem inimigos. Só interesses’, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil nº 41, de novembro de 2010 (págs. 6-7), seu autor, o jornalista Nikolas Kozloff, aborda os paradoxos verificados em países da América Latina que vêm ampliando as relações econômicas com o Irã de Ahmadinejad. É que, segundo o artigo, Argentina, Brasil, Venezuela e Bolívia teriam políticas de direitos humanos e sociais, enquanto o Irã, não. Equidade de gênero, princípios democráticos (direito de expressão e manifestação políticas), direitos humanos (dignidade e não discriminação) seriam direitos completamente reprimidos no país governado por Ahmadinejad.


Surpreender-se com esta aproximação por parte de países que internamente têm procurado dar efetividade a tais direitos, seria, segundo o autor, uma ingenuidade. A lógica dos interesses econômicos sempre foi pragmática. Verdade resumida na frase de um primeiro-ministro da rainha Vitória nos períodos de 1855 a 1858 e de 1859 a 1865, lorde Palmerson, esclarecendo não ter amigos ou inimigos, apenas interesses.


A argumentação principal do artigo do jornalista Kozloff parece-me perfeita. Sim, países, por necessidades econômicas estratégicas, às vezes se veem compelidos a estreitar relações econômicas com nações cujas políticas de direitos humanos contradizem as suas próprias e os princípios defendidos pelos próprios governantes que com tais países se sentem compelidos a ampliar transações mercantis. O problema reside naquilo que ele afirma ser a realidade do Brasil no tocante ao reconhecimento – pelo Estado e pela sociedade – dos direitos de pessoas com orientação homossexual.


Afirmações questionáveis


O jornalista afirma que…




‘Apesar de os homossexuais ainda sofrerem discriminação no Brasil, o país figura entre os mais tolerantes da América Latina. São Paulo organiza a parada gay mais importante do mundo, que atrai milhões de participantes todos os anos. Alguns Estados autorizam casamentos homossexuais, defendidos tanto pela presidente eleita, Dilma Rousseff, quanto por seu principal oponente na eleição presidencial de outubro de 2010, José Serra.’


Sobre este ponto de suas afirmativas, ao contrário das outras apresentadas no texto, não releva Nikolas sua fonte. E nem poderia.


São verdadeiras as suas afirmativas de que ‘o continente [latino-americano] fez importantes progressos nesse domínio’, dando como exemplos a ação de Cristina Kirchner em defesa do Estado laico e da isonomia, legalizando as uniões conjugais entre pares do mesmo sexo, em julho de 2010, e as iniciativas de Mariela Castro, filha de Raul Castro, atual presidente de Cuba – embora as pressões da Igreja tenham lhe oferecido grandes obstáculos.


Não representam a verdade, porém, afirmar que a parada gay de São Paulo seja a mais importante do mundo; que alguns Estados da federação brasileira autorizam o casamento de homossexuais, ou mesmo que o reconhecimento desse direito tenha sido defendido pelos dois candidatos à Presidência que disputaram o segundo turno das eleições. Primeiro, o tipo de federação vigente no Brasil não outorga aos estados o direito de legislar sobre questões de direitos civis [Constituição da República, 1988]. Nossos códigos são federais. A competência para este tipo de assunto é do Congresso Nacional, já desde a Constituinte de 1987 tomado por evangélicos, católicos e outros conservadores, naquela ocasião formando o ‘Centrão’ [Cristina Lucy Câmara da Silva. Cidadania e Orientação Sexual: A Trajetória do Grupo Triângulo Rosa. Rio de Janeiro: Academia Avançada, 2002; João Antônio de Souza Mascarenhas. A Tríplice conexão: Machismo, conservadorismo político, falso moralismo. Rio de Janeiro: 2AB, 1998].


Daí porque até hoje, passados quinze anos, o projeto da então deputada Marta Suplicy (Projeto de Lei nº 1151-A/95), juntamente com todos os seus substitutivos, não obteve aprovação. Da mesma forma como também não se conseguiu fazer inserir na Constituição de 1988 o termo ‘orientação sexual’ entre os exemplos de motivos de práticas discriminatórias, vedadas no país (artigo 5º).


Maior número de homicídios


O projeto que visa a inserir na lei que protege contra discriminação também a violência praticada em razão da orientação sexual, sexo ou gênero (Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, com as alterações introduzidas pela lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, que apenas elenca, entre os motivadores das práticas proibidas, ‘raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional’), tem sido alvo de intensa campanha perante a opinião pública por parte, sobretudo, de evangélicos dogmáticos e patrulhadores da sexualidade adulta, consciente, concorde, não criminalizada. Sempre com o objetivo de deturpá-lo, de modo a construir uma opinião contrária sobre o mesmo – no que, é forçoso reconhecer, tem sido bastante eficazes. O Projeto de Lei da Câmara (PLC) de nº 122, de 2006, originalmente projeto de lei nº 5.003, de 2001, da deputada federal Iara Bernardi (PT-SP), até a data de hoje não foi aprovado. Muito embora em 72 leis orgânicas municipais, duas constituições estaduais e na do Distrito Federal haja expressa proibição de discriminar em razão da orientação sexual [ver aqui].


Sobre a relativamente ‘alta tolerância’ praticada no país, desconheço a existência de alguma pesquisa havida neste sentido. O que se dispõe, contudo, aponta justamente em sentido contrário. Compilações realizadas pelo Grupo Gay da Bahia (GGB, desde 1981) apontam que, apenas contabilizando as notícias veiculadas – que, sabe-se, são sempre bastante inferiores à realidade –, a cada dois dias, um ‘homossexual’ (travesti, transexual, gay ou lésbica) é assassinado barbaramente no Brasil. O relatório anual do GGB, divulgado em abril de 2010, aponta para 2009 um aumento de nove casos de homofobia a mais que os 198 divulgados pela imprensa no ano de 2008. Segundo o antropólogo e professor (aposentado) Luis Mott, fundador do Grupo, ‘mesmo com todos os programas lançados pelo governo federal, o Brasil é o país com o maior número de homicídios contra lésbicas, gays, bissexuais e travestis’ [ver aqui]. Segundo afirma o presidente do Grupo, Marcelo Cerqueira, ‘depois do Brasil, o México (35) e os Estados Unidos (25) foram os países mais homofóbicos em 2009’. ‘Os dados do GGB revelam, ainda, que entre 1980 e o ano passado foram mortos 3.196 gays no Brasil. Entre as vítimas estão padres, pais-de-santo, professores, profissionais liberais, profissionais do sexo e cabeleireiros. Do total das vítimas, 34% foram mortas com armas de fogo, 29% (arma branca), 13% (espancamento) e 11% (asfixia). Os demais 13% foram mortos por outras modalidades’ [idem].


Sem pejo para negar o passado


Pesquisa realizada em 2008 pela Fundação Perseu Abramo em parceria com a Fundação Rosa Luxemburg Stiftung e divulgada em fevereiro de 2009, dentre os seus achados, concluiu que ‘por trás da imagem de liberalidade que o senso comum atribui ao povo brasileiro, particularmente em questões comportamentais e de sexualidade, há graus de intolerância com a diversidade sexual bastante elevados – coerentes, na verdade, com a provável liderança internacional do Brasil em crimes homofóbicos’ [ver aqui].


No que diz respeito aos posicionamentos dos candidatos à Presidência da República no segundo turno das eleições – Dilma Rousseff, atual presidente eleita, e José Serra, candidato derrotado –, igualmente a realidade é muito pior do que aquela afirmada pelo jornalista Nikolas Kozloff. Se houve algo que ficou patente nessa última campanha presidencial, foi justamente o elevadíssimo tom conservador, obscurantista e contraditório apresentado pelos dois candidatos, com vistas a conquistar o eleitorado desinformado, inculto (e manipulável) e extremamente conservador – entre estes, principalmente os religiosos. Semelhante marca foi amplamente divulgada em diversos veículos de informação.


José Serra, embora enquanto deputado constituinte tivesse votado a favor da inclusão do termo ‘orientação sexual’ entre os motivos exemplificativos de discriminação, cuja prática a Constituição proíbe (enquanto que o príncipe dos sociólogos, o então senador Fernando Henrique Cardoso, mesmo presente no Congresso, tivesse preferido deixar de comparecer à votação) [Mascarenhas, op. cit.], quando da campanha presidencial não teve pejo em negar o seu passado e afirmar que, se eleito presidente da República, vetaria o projeto de lei que visa criminalizar a práticas discriminatórias (homofóbicas) [ver aqui]. Dilma Rousseff também seguiu na mesma estratégia. Uma simples ‘googleada’ teria esclarecido o jornalista do Le Monde Diplomatique Brasil, Nikolas Kozloff [ver aqui].


Intolerância, preconceito e estigmatização


Quanto à parada Gay de São Paulo, se ‘mais importante’, para o jornalista, quer dizer ‘com o maior número de participantes’, ele está com a razão. Porém, se por ‘importância’ queira se referir ao significado social e político, para além da mera visibilidade – quer dizer, a capacidade efetiva de mobilização de contingente de indivíduos conscientes para participar de protestos políticos –, o que de fato espelham as Paradas do Orgulho de países como Estados Unidos, Inglaterra e Canadá –, ele, desafortunadamente, não está – mais uma vez – com a razão.


Nosso movimento LGBT nacional, embora exiba grandes contingentes em suas festas anuais que são as tais paradas gays, não é capaz de mobilizar qualquer contingente significativo caso se trate de manifestação política, de protesto ou reivindicação, desprovida de trios elétricos, bebida e farra – aí entendida numa acepção elástica.


Indubitavelmente seria muito bom poder acreditar que as afirmações do senhor Nikolas são verdadeiras. Afinal, são alvissareiras. Fazem-nos sentir muito bem. Sentimo-nos politicamente conscientes, partícipes. Dotados de excelente capacidade cívica (de produção de capital social). Os dados, porém, apontam em sentido diametralmente opostos. E não contestar, à luz desses dados, as afirmativas fantasiosas do jornalista Nikolas Kozloff, se afiguraria, sobretudo diante dos últimos acontecimentos havidos – e noticiados – em São Paulo, na Avenida Paulista [ver aqui], um enorme desrespeito a tantas vítimas da intolerância, do preconceito, da estigmatização da diferença.

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Doutoranda em História Social pela UFF; mestre em Política Social (Proteção Social)/UFF; graduada em Direito pela UFRJ; e professora, pesquisadora e serventuária da justiça estadual, Rio de Janeiro, RJ