O falecimento de Canhoto da Paraíba na quinta-feira (24/04) me despertou duas ou três coisas. A primeira delas foi a leviandade, a ligeireza com que a imprensa tratou e trata as informações que cercam esse gênio do violão. Como uma praga, do Rio de Janeiro a São Paulo e, portanto, do centro ao centro do Brasil, Canhoto apareceu, ora com a idade de 80, ora com 81, ora até com a idade real de 82 anos.
E assim postos e pesarosos, difundiram que a causa mortis havia sido enfarto, ou infarto, ou enfarte, com discrepância apenas na grafia do mal. Mas Canhoto faleceu de nova agressão de um AVC. Por fim, uma notícia on line acrescentou que Canhoto deixava mulher e quatro filhos. Mas o músico era viúvo havia quatro anos, e deixou filhas, somente filhas. O G1 (globo.com) chegou a lhe mudar até o nome para Canhotinho.
Essas coisas eu sei, essas correções eu faço, não bem por ser especialista em Canhoto. Os especialistas dele atendem pelos nomes de Paulinho da Viola, compositor finíssimo, e Henrique Annes, um virtuose.
Impessoalidade fria e distante
Essas coisas sei porque fiz o dever de casa, telefonei para Vitória, filha, companheira e enfermeira dos últimos anos do violonista, na periferia de Olinda. Se agisse como o comum dos redatores, sentados diante do monitor e do Google, repetiria a informação do Dicionário Cravo Albin, que registrou 19 de maio de 1928 como a data do nascimento de Canhoto da Paraíba, em lugar de 19 de março de 1926. Mas repórter só ouve gente do povo em ocorrência policial, e Vitória, filha do povo e de Canhoto em uma só pessoa, jamais seria melhor fonte que o Dicionário Cravo Albin…
A segunda delas me ocorreu no seu enterro, na sexta-feira (25/4). Ao ver políticos que se fizeram presentes no cemitério pobre do município de Paulista, eu me disse ‘artista bom é artista morto’. Entendam, e aqui sou obrigado a entrar de corpo na reflexão. Depois que meu texto ‘Oração por Chico Soares, Canhoto da Paraíba‘ foi lido no Mais Você, de Ana Maria Braga, em 7 de setembro de 2004, os governos da Paraíba e de Pernambuco lhe concederam pensões. Somadas, davam algo em torno de quatro salários mínimos. Isso é fato. Mas desejo chamar a atenção para o seguinte: o poder público – não importa que partido se encontre no pódio – age com os nossos imortais de modo puramente burocrático. Diria mais, com uma fria e distante impessoalidade.
Preces e orações inúteis
Dada a pensão – magnífica –, passemos a outro assunto da pauta. Quero dizer: em nenhum momento os governos se moveram para dar a Canhoto – e outros artistas populares como ele – uma atenção de resguardo, de defesa, de radical reconhecimento. Quero dizer, enfim: Canhoto da Paraíba faleceu sem que recebesse uma fisioterapia. Fosse a justiça o poder, ele receberia todos os dias automóvel com motorista para levá-lo aos melhores hospitais e aos mais excelentes fisioterapeutas. Mas ele já possuía uma pensão, não é? Dinheiro tinha, sem dúvida.
A terceira e última é: artista só vai a jantar no palácio a trabalho. Artista não tem pessoa, tem função. Um dia, quem sabe, o poder público descobrirá que artistas valem mais que os mais belos micos dourados. Mesmo que não possam mais tocar um só violão. Na terra e no tempo distante em que isso houver, serão inúteis preces, orações, como a deste ateu confesso que em 2004 rogou: ‘Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, mostrai que sois verdadeiramente mãe de todos artistas caídos em desgraça na terra’.
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Jornalista e escritor, Recife, PE