Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cansei… de ver gato escondido com o rabo de fora

Tomei notícia da campanha quando passei a receber mensagens de amigos me convidando para participar da manifestação ‘Cansei’.

Depois os jornais deram conta do escasso comparecimento popular ao evento. Em seguida recebi por e-mail viral um formidável comercial, produzido em estúdio, com todo o requinte publicitário, em que numerosos modelos revelam silenciosamente, exibindo cartelas que vão abrindo os múltiplos motivos do cansaço de cada um. Finalmente, num anúncio de página inteira de jornal, também muito bem produzido, a OAB-SP me convida para mostrar minha indignação fazendo um minuto de silêncio dia 17 de agosto, às 13 horas. (Curioso, pensei, passo horas silencioso, todos os dias.)

Fui ao site ‘Cansei’ e lá encontrei outras peças publicitárias igualmente vigorosas, uma lista de 28 artistas e esportistas e outra de 64 entidades apoiadoras, entre as quais as mais expressivas (e reveladoras) são Fiesp, Abert, ADVB, CRM e Associação Comercial de São Paulo. Entre as entrevistas de empresários, li a de Paulo Zottolo, presidente da Philips do Brasil, iniciador do movimento. Ele imaginou uma campanha apartidária para despertar-nos da apatia – tão apartidária que, acredita, até o presidente Lula poderia participar. O que ele disse à Folha de S.Paulo é mais eloqüente do que dizem os anúncios:

‘O marasmo hoje é do cidadão brasileiro, não é do governo. Como cidadão brasileiro, nós estamos aceitando uma tragédia atrás da outra e paramos de nos indignar. E por que paramos de nos indignar? Por que nós como brasileiros não ligamos para o próximo? Não é isso. É porque a sucessão de tragédias é tão grande que você passa de uma indignação para outra. Você passa do dólar na cueca para o buraco do metrô, para o acidente com o avião da Gol, para o acidente com outro avião, para uma notícia que você está voando no espaço aéreo com um buraco negro e que você pode bater com contrabandista, com bala na favela, com garoto sendo arrastado no cinto de segurança de um carro no Rio… Portanto, ‘Cansei’.’

Duas leituras

Perguntado sobre se o movimento vai apresentar alguma proposta, Zottolo responde que ‘se tivesse proposta, seria um movimento partidário. Como não é partidário não pode ter proposta’. Aí, creio que ele se engana. O movimento precisaria ter uma proposta para emplacar. E precisaria ter capacidade de proselitismo popular, coisa que não terá com essa campanha de comunicação que veicula.

Observei que a campanha pode ter duas leituras. A primeira é a de que ela quase expressa a indignação cívica que existe mesmo, principalmente nas classes A e B e vai decrescendo até não ter registro nas classes D e E.

A segunda está nas entrelinhas, onde se lê mais ou menos: ‘Cansei de viver no meio da insegurança, da roubalheira, da desigualdade na distribuição de privilégios etc. Autoridades: tratem de cumprir a sua obrigação de pôr ordem na casa para que eu possa viver em paz.’

Congresso é amostra de nós mesmos

A mensagem explícita da campanha é ‘cansei de não fazer nada’ e ela convida você a ficar em silêncio durante um minuto, o que é um protesto mínimo, passivo, pouco mais do que não fazer nada – só seria gesto ousado no tempo da ditadura militar. Eu aplaudiria uma campanha que convocasse o cidadão indignado a exercer sua cidadania. Na sociedade democrática, podemos participar e influir na vida pública sem necessariamente passar por órgãos constituídos ou partidos. Existem canais para manifestar indignação, reivindicar medidas, mobilizar os demais, tentar formar consensos. O próprio presidente da seccional de São Paulo da OAB, Luiz Flávio B. d’Urso, escreve:

‘Com esta campanha, o Movimento pretende lembrar à população que cidadania não é algo que se exerce apenas pelo voto, de quatro em quatro anos. Cada um de nós pode e deve se manifestar por meio dos canais previstos em um regime democrático. Somente com tal participação é que nossa jovem democracia se consolidará e atingirá um patamar mais maduro.’

Buscar essa participação é trabalhoso, requer paciência e às vezes o tiro sai pela culatra – acabamos descobrindo que queremos aquilo que a maioria não quer. Estamos indignados por ver a inépcia, a ignorância, a corrupção e o abuso sentados no poder? É preciso não esquecer que fomos nós que colocamos essas indignidades nos postos em que estão. Tratemos de ter o cuidado de selecionar melhor os nossos candidatos nas próximas vezes. Tratemos também de nos educar: ao condenar a ignorância e a venalidade dos nossos parlamentares, lembremo-nos de que o Congresso é uma amostra, escolhida a dedo, de nós mesmos. Tivéssemos um legislativo de compostura e saber, como o francês, ele não seria nada representativo.

Silêncio difícil de ser ouvido

Quando diz ‘cansei de não fazer nada’, a campanha alude à inércia da opinião pública, passiva diante dos desmandos do poder público por um lado e, por outro, de uma mídia enferma de denuncite e sequiosa por promover crucificações. Convém lembrar que, nem faz tanto tempo, quando a noção de cidadania ainda não estava generalizada como hoje, porque a memória da repressão ainda era fresca, a opinião pública se mobilizou e conseguiu derrubar um presidente da República. Para tanto, não precisou de comerciais nem de anúncios publicitários.

As peças da campanha, com a sua criatividade, a boa redação dos textos, o anúncio clean, o comercial enxuto, bem fotografado e bem editado, são exemplos de competência publicitária. Mas também exibem na linguagem e na atmosfera o rótulo de sua origem. Isso as prejudica inapelavelmente: são representantes da classe dirigente tentando falar com… a classe média.

O presidente da Philips nega que o movimento seja partidário e elitista, porém, mais do que o nome de seus principais apoiadores, é a comunicação publicitária que o desmente. Essa campanha veste a roupa e tem os modos da elite e assim será identificada – não é preciso que o PT o diga. Ela jamais será capaz de mobilizar uma multidão. Duvido até que consiga fazer com que muita gente se lembre de fazer esse minuto de silêncio, aliás difícil de ser ouvido. Ela só confirma a tese de que a habilidade de fazer anúncios publicitários não serve para a comunicação pública quando o interlocutor a alcançar é o cidadão.

Carimbo comercial

Por que mencionei, no título, o rabo escondido do gato? Porque ele aparece na mistura das causas de cansaço mencionadas nas várias peças: ‘Governo paralelo dos traficantes, tantos impostos para nada, tanta impunidade, tanta burocracia, o caos aéreo, CPIs que não dão em nada, crianças na rua, presidiários com celular, medo de parar no sinal, empresários corruptores, balas perdidas, tanta corrupção’. Quem pode ser o responsável por todos esses desmandos de causas tão diversas, apresentados no mesmo saco?

Ora, o governo, responderão todos os classe média. Há muitos governos, mas quando dizemos apenas ‘o governo’ todos pensam em Brasília e na Presidência da República. Nossa cultura é ainda imperial. No site do movimento há um filme muito claro, que enumera, sem atribuir diretamente mas relacionando, os escândalos ocorridos nos sucessivos governos de Geisel, Figueiredo, Sarney, Collor, Itamar Franco, FHC e Lula. É lógico que, no governo Lula, a lista já ultrapasse todas as medidas. Isso é tão falacioso como tantas afirmações soltas, sem nenhuma justificação, que se disparam nos palanques eleitorais. Visto esse rabo todo, tenho uma idéia da cor do gato. A campanha na verdade poderia se chamar Movimento Cívico contra os Políticos. Seria também contra a Democracia?

Na democracia – aliás em todos os regimes – as chamadas classes produtoras têm toda a liberdade de se manifestar e buscar adesões. Nesse ponto até concordo em que o movimento faz bem em usar propaganda de carimbo comercial porque assim se identifica. Mas se consegue empolgar a sociedade já é outra história.

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Publicitário, São Paulo, SP