Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

“Censura judicial é fenômeno crescente”

A censura judicial “é um fenômeno crescente” na imprensa brasileira, adverte o advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira, que defende o Estado na luta para derrubar a censura que o atinge há dois anos. Numa comparação com o passado, quando o jornal enfrentou duros desafios para informar, ele adverte: “Não são mais os agentes do Executivo, ou os esbirros policiais, que decretam um “psiu” ao noticiário e à livre opinião”. Em nossos dias, diz, “alguns equivocados juízes é que resolveram assumir esse lastimável papel”.

Neste balanço de dois anos de peregrinação por tribunais, ele esclarece os dois pontos vitais da questão. Primeiro, que uma informação, se é de interesse público, deve prevalecer sobre o direito à privacidade. Segundo, que o direito de informar é intocável. Se houver eventuais abusos, o jornal que responda judicialmente. “Nunca a censura anterior à publicação, mas somente a solução indenizatória posterior à divulgação.”

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Qual o seu balanço desses dois anos de luta para derrubar a censura ao Estado?

Manuel Alceu Affonso Ferreira– Em boa parte sinto-me um pouco frustrado por não ter conseguido até o momento livrar o jornal da censura. Todavia, a um só tempo, confortado por algumas vitórias episódicas e igualmente certo de que, ao final de todas essas peripécias forenses, a liberdade de informação prevalecerá, goste ou não o adversário.

Que vitórias foram essas?

M.A.A.F.– Destaco a decisão do juiz de primeira instância, Daniel Felipe Machado, que recusou o pedido liminar de censura, assim como o voto do relator, desembargador Waldir Leôncio Lopes Jr., que decretou a suspeição do desembargador Dácio Vieira, do TJ-DF. Depois, o acórdão do STJ que condenou o suspeito ao pagamento das custas do incidente. E também o apoio jurídico, sob a forma de um parecer, dos professores Ives Gandra da Silva Martins e Arnold Wald.

O sr. está otimista quanto ao futuro do caso?

M.A.A.F.– Por tudo quanto li e ouvi no longo curso desse processo, estou convencido de que muitas autoridades judiciárias do Distrito Federal e dos tribunais superiores são sensíveis às agruras censórias do Estado. No STF, por exemplo, emocionaram-me as manifestações favoráveis dos ministros Ayres Britto, Celso de Mello e Cármen Lúcia, quando acolheram a reclamação que apresentamos contra o acórdão do TJ-DF. Infelizmente, prevaleceu o voto do relator, ministro Cézar Peluso, que, acompanhado pelo então presidente, Gilmar Mendes, recusou conhecimento à reclamação sem enfrentar o mérito do litígio.

A censura judicial é um fenômeno em ascensão na vida brasileira?

M.A.A.F.– De fato, a censura judicial é fenômeno crescente. Não são mais os agentes do Executivo, ou os esbirros policiais, que decretam um “psiu” ao noticiário e à livre opinião fazendo com que sejam substituídos – como o Estado vivenciou no passado que pensávamos morto e sepultado – pelos Lusíadas, pelas receitas culinárias ou pelo anúncio da Rádio Eldorado (“Agora é Samba”). Hoje, alguns equivocados juízes é que resolveram assumir esse lastimável papel, esquecidos de que no eventual confronto entre a liberdade jornalística e os direitos individuais da personalidade, a solução razoável e proporcional se acha no interesse público amparado pela informação. Ou seja, presente esse interesse – como ele indiscutivelmente se acha no caso Sarney -, ele e nenhum outro será o fator dominante, cedendo-lhe lugar à vontade egocêntrica do atingido. E, no caso das figuras notórias, notadamente dos políticos ou administradores públicos, isso ainda se torna mais claro e perceptível.

A que atribui tanta demora do STJ e do STF na definição da sentença?

M.A.A.F.– Melhor seria que a Justiça pudesse ser mais pronta e célere, principalmente quando se acham em disputa as liberdades públicas fundamentais, uma delas a de imprensa. O STF, por maioria, já debateu a censura que se abate sobre o jornal, preferindo, a meu ver erradamente, relegar a discussão de mérito para o futuro, quando algum outro recurso nosso ali chegasse. Quanto ao STJ, aguardamos o julgamento do recurso especial distribuído ao ministro Benedito Gonçalves.

O empresário Fernando Sarney decidiu, tempos atrás, desistir do processo. Por que o jornal recusou?

M.A.A.F.– A simples desistência requerida por Fernando Sarney, ainda que viesse a ser judicialmente homologada, segundo o Código de Processo Civil não o impediria de, a qualquer momento, propor nova ação contra o Estado, buscando tolher de novo o noticiário que lhe dissesse respeito. Por isso, exigimos que, ao invés de apenas desistir, ele renunciasse ao suposto direito invocado. Isso sim redundaria em uma decisão judicial de mérito – e apenas nessa hipótese a eventual nova ação ficaria inviabilizada. Mas, acima de toda essa justificativa jurídica, há algo ainda mais sério. O jornal não está apenas atuando por interesse próprio. Os seus leitores têm direito às informações que o jornal detém, mas foi impedido de publicar. Se é assim, como poderia o Estado abdicar de um direito que não é somente dele próprio, mas por igual do seu leitorado?

O que se pode esperar, ao se adotar esse caminho de buscar uma jurisprudência no assunto?

M.A.A.F.– O Estado fez muito bem em manter viva a lembrança da censura que sofre. Toda e qualquer questão vinculada à liberdade de imprensa é essencial à cidadania. Rui Barbosa ensinava que “a Constituição proibiu a censura irrestritamente, radicalmente, inflexivelmente”. A atual censura é medida de força lesiva ao Estado Democrático de Direito. E aquilo que a torna mais grave é o fato de sua imposição se dar pelo poder estatal do qual menos poderia se esperar uma ordem censória: o Judiciário.

Sendo a liberdade de expressão tão claramente definida na Constituição, como explicar que haja juízes relativizando esse direito a ponto de, na prática, reintroduzir a censura?

M.A.A.F.– O grande entrave é que alguns, diante de certas regras da legislação ordinária, às mesmas não dedicam uma leitura constitucional. Veja-se, para ilustrar, aquilo que no artigo 21 do Código Civil autoriza o juiz a, em nome da inviolabilidade da vida privada, impedir a notícia atentatória à privacidade. Ora, a leitura constitucional desse dispositivo obrigaria ao entendimento de que a “privacidade” tutelada pelo Código Civil não abrange qualquer tipo de privacidade, mas tão somente aquela irrelevante para o interesse coletivo. Figure-se a hipótese de um presidente da República que seja cocainômano. O vício enquadra-se, não há dúvida, na sua esfera privada. Mas essa intimidade, pelo cargo que ocupa, é relevantíssima ao exercício das suas funções – o interesse público envolvido legitimaria a divulgação da reportagem. Há mais: no mesmo preceito em que qualificou de inviolável a privacidade, a Constituição apontou o remédio aplicável sempre que essa inviolabilidade venha a ser desrespeitada, ou seja, “a indenização pelo dano material ou material decorrente de sua violação” (art. 5.º, X). Noutras palavras, nunca a censura anterior à publicação, mas somente a solução indenizatória posterior à divulgação.

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[Gabriel Manzano é jornalista do Estado de S.Paulo]