Coincidindo com a chegada ao Rio das tropas federais destinadas a garantir um mínimo de liberdade aos cidadãos no processo eleitoral, começam a surgir na imprensa ponderações que põem em questão a responsabilidade presente e passada do Estado na transformação da cidade em zona de guerra permanente. Ao passado refere-se o economista Mauro Osório, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Globo de quinta-feira (11/9). Mesmo salientando a existência de problemas semelhantes em outras regiões do país, ele chama a atenção para a gravidade com que se apresentam na cidade e no estado do Rio de Janeiro.
É verdade que tudo isso já parece evidente a todo mundo. O artigo de Osório levanta, entretanto, um tópico cada vez mais recalcado na memória coletiva: a parte que cabe aos militares. É que as cassações promovidas pelo movimento de 1964 (além da fusão precipitada do estado da Guanabara com o do Rio de Janeiro) propiciaram a ascensão do ‘chaguismo’ (Chagas Freitas) e de uma lógica clientelista, desorganizadora da normalidade política. Seus sucedâneos – o ‘brizolismo’ e o ‘garotismo’ – apenas aprofundaram uma crise institucional, cujos reflexos atuantes na polícia, na gestão fazendária e no poder legislativo, são hoje tornados diariamente visíveis pela imprensa.
Laços libidinais com as massas
A ‘morte da política’, tema caro aos pensadores europeus do pós-modernismo, não resultou aqui em nenhuma ‘transpolítica’ (superação da clássica representação parlamentar pela cultura), e sim, na ‘infrapolítica’, que é um eufemismo para a politicagem rasteira, ou seja, a mais baixa escala daquilo que o pensador italiano Antonio Gramsci chamara de ‘pequena política’. Apesar da liberdade formal nos ritos de calendário eleitorais, a deterioração da esfera pública e dos mecanismos representativos acarretaram a ausência do Estado e da cidade reais no funcionamento concreto da ação política. Estatísticas da Transparência Brasil mostram que a Câmara de Vereadores do Rio vive precisamente da falência dos serviços públicos, ao serem desviados de forma clientelística os recursos institucionais para os ditos ‘centros sociais’.
Essa falência implica perda de confiança coletiva no Estado, entendido como organização política da cidadania, como controle social efetivo. Não é acadêmico consultar a este respeito o Freud de Psicologia das Massas e Análise do Ego, para evocar a sua intuição, sempre comprovada, de que a exemplaridade do líder (o chefe de um grupo, o político, o partido) e o laço libidinal por ele tecido ensejam a constituição de Estado forte, porque identificado a uma comunidade. A ‘fantasia de unidade’ daí resultante pode oferecer um quadro de onipotência (no qual não raro florescem as tiranias e os totalitarismos), mas também um horizonte de esperanças.
A crença nesse quadro é fundamental para a ação imediata da cidadania. É o que frisava Gorki, em 1920, ao dizer que…
‘Lênin tornou-se um personagem lendário e isso é bom. Eu digo isso é bom, a maioria das pessoas precisa absolutamente acreditar para começar a agir. Seria muito demorado se tivéssemos que esperar que elas começassem a pensar e a entender’.
Para a consciência esclarecida, esta é uma frase civicamente perigosa porque supõe a proibição do pensamento autônomo e a repetição automática da palavra dos símbolos de autoridade, que podem ser um tirano qualquer ou seu delegado. Em princípio, a democracia parlamentar, com sua abertura para a generalização das contradições ou das expressões particulares, corrigiria os excessos de liderança desse tipo de pensamento único. Mas a prática não se cansa de demonstrar que a centralização do poder e a constituição de seus laços libidinais com as massas podem produzir efeitos perversos, mesmo no interior de regimes democráticos aparentemente avançados.
Ilegalistas e seitas
Em termos psicossociológicos, o que ocorreu no Brasil com o regime militar – isento de chefes carismáticos ou personalistas, do tipo Perón ou Vargas – foi o enfraquecimento progressivo das ‘fantasias de unidade’ geridas pelo Estado e seus derivativos ideológicos. Os meios de comunicação foram tomados pela ideologia do espetáculo e os partidos políticos, esfacelados, passaram a girar burocraticamente em torno de si mesmos. O velho espírito oligárquico ressurgiu com toda força nos grotões profundos; nas metrópoles, os espaços dividiram-se em função dos poderes clientelistas.
Este último aspecto fica claríssimo no Rio de Janeiro, onde as favelas, na ausência do Estado, passaram a reeditar o que Marx chamou de modo de produção asiático, isto é, o surgimento de figuras de autoridade absoluta (traficantes, milicianos) associadas à organização grupal. Aí não se trata efetivamente de ‘pensar e entender’, e sim, de acreditar e submeter-se à tirania dos chefetes, ‘pais’ opressores, mas detentores do controle de um laço comunitário socialmente regressivo. Esse é igualmente o espaço em que florescem as seitas, com sua organização totalitária e suas lideranças carismáticas. Por isso bandos ilegalistas e seitas são capazes de se dar as mãos, ainda que de modo não totalmente explícito, graças ao laço estabelecido pela violência das armas e pela violência da verdade sectária.
O futuro cívico
Tal é o estado de coisas que dá margem ao fenômeno da mafialização da política e da vida pública, com as conseqüências violentas que se conhecem. Basta prestar um pouco mais de atenção às páginas dos jornais para se dar conta que a afirmação da gravidade do fenômeno é hoje partilhado pela direita e pela esquerda políticas.
Segundo um militante clássico da esquerda – Fernando Gabeira, candidato à prefeitura do Rio –, a cidade ‘tem que ser libertada das milícias e do tráfico’. Dizendo não conhecer outra grande cidade do mundo com problema dessa magnitude, ele localiza ‘a decadência do Rio no fato de haver quase 200 comunidades ocupadas militarmente por forças que não são do governo’.
É patético, mas dolorosamente verdadeiro, reivindicar, como faz o candidato, um ‘projeto de libertação’, em que se envolvessem os governos federal, estadual e a prefeitura. Mais do que patético, verdadeiramente triste, é se dar conta de que a cidadania eleitora ainda não se conscientizou plenamente do nexo entre a deterioração política do Estado, como forma de organização social, e a decadência dos tradicionais laços de urbanidade (aqueles que mantêm vivo o socius) e do sentido atribuído à idéia de cidade.
A imprensa tem um papel importante a cumprir na elucidação coletiva do nexo que aponta para além das medidas tópicas, pontuais, como a das tropas que chegam para garantir o formalismo do pleito eleitoral. Talvez não seja isso mais possível para as eleições que se avizinham. Mas é certamente algo que se impõe para os tempos que se seguirão, para o futuro cívico da cidade, se houver algum.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro