Não foi possível ficar calado frente à coluna publicada no jornal Zero Hora de domingo (7/9, ‘Educação para quem?’), cujo objetivo parecia ser, ao menos em algum nível, problematizar a educação brasileira. O economista Gustavo Ioschpe, já carimbado em ensaio pertinente ao especial da revista Veja sobre o ensino (22/8), disserta em cinco parágrafos aquilo que considera um viés equivocado de abordagem acerca de um conjunto de incompetências do sistema escolar, além de apontar o caminho mais correto de análise sobre os fenômenos congruentes.
A rigor, não estamos aqui tentando atuar como uma espécie de ombudsman da mídia impressa gaúcha, apesar de cumprirmos, de certa forma, este papel de fundamental importância ao crescimento qualitativo dos nossos meios de comunicação de massa. Por outro lado, a motivação maior deste texto está centrada numa defesa da educação laica, transformadora, na qual a produção e circulação de conhecimentos e saberes possam ser demarcadas em valiosos atributos. Para tanto, acreditamos necessária nessa trajetória engajada, complexa e desafiante, a defesa do professor enquanto profissional da educação, sujeito humano direcionado ao ensinar/aprender nos sentidos mais amplos; a defesa de quem sobrevive no mundo através da rotina de sala de aula.
Sendo um mecanismo de suma relevância na estrutura da educação de um Estado democrático, estes docentes merecem respeito. Mais do que isso, merecem que suas reivindicações sejam atendidas, negociadas, pensadas, ditas e re-ditas. A tarefa de empenhar uma reflexão nesse sentido será encarada logo adiante, prezados leitores. Seguem, portanto, cinco respostas aos argumentos de Ioschpe, posicionadas e assumidas, em favor de um protagonismo do professorado nacional.
Uma utopia empolgante
Ioschpe, parágrafo 1:
‘Quando se fala em educação no Brasil, freqüentemente se ignora ou menospreza aquele que deveria ser o principal ator do processo, o objetivo de todas as políticas públicas e o foco de todas as nossas atenções: o aluno. Ouve-se repetidamente que devemos resgatar a dignidade do magistério, pagar melhor os professores, escolher melhores diretores, arrumar as escolas, disponibilizar computadores com banda larga a todos os alunos etc. É raro alguém falar que devemos resgatar a dignidade dos alunos, condenados a uma vida de ignorância e subempregos por conta de uma educação de péssima qualidade, ou questionar se a constante indisciplina e o desinteresse do alunado não são uma conseqüência das aulas chatas que ele recebe, ao invés de um defeito de caráter do próprio aluno ou da sociedade que o cerca.’
Resposta:
No decorrer do curso de licenciatura em Ciências Sociais, pela UFRGS, poucas vezes presenciamos colegas ou professores menosprezando ‘aquele que deveria ser o principal ator do processo, o objetivo de todas as políticas públicas e o foco de todas as nossas atenções: o aluno’. De todo o modo, num sistema formado por diversos agentes conectados, como é o sistema escolar, com certeza o estudante é um foco primordial. No entanto, nem todas as políticas públicas, tampouco o único foco de nossas atenções, devem estar voltadas apenas e exclusivamente a um dos sujeitos do processo, importantíssimo, mas constituinte de um todo.
Sem dúvidas, a formação de turmas de alunos legendadas pelo sucesso acadêmico é de imperativa preocupação, malgrado o intento final dependa de uma série de fatores emaranhados na construção desse resultado. Sem vontade alguma de sermos estruturalistas, ainda que nem a sua extrema oposição, quando investigamos um colégio e tentamos ser um pouco razoáveis em nossas perspectivas de qualidade, pensamos em boas salas de aula, com utensílios capazes de tornar o clima agradável para um ambiente letivo, tanto em termos de temperatura e iluminação, quanto de recursos didáticos de audiovisual, via de exemplo; uma biblioteca com alguns computadores, dotada de uma coleção de livros, que pode ser mediana, com disponibilidade para retirada por mais de um usuário a cada obra, além de um funcionário atendente e um bibliotecário; banheiros limpos, dispondo de papel higiênico, sabonete e espelho, o que demanda uma equipe de funcionários para cumprir a função da limpeza; um setor pedagógico, no qual profissionais da área, juntamente com psicólogo(s), e quem sabe, numa utopia empolgante, um médico pediatra; professores qualificados, que pesquisem e não apenas lecionem, leiam, possam comprar livros, tenham acesso ao conhecimento espalhado pela web, estejam capacitados financeiramente a participar de congressos, seminários, simpósios etc., mas que também saibam lecionar, gostem do que fazem, vejam nos seus alunos o seu motivo de ser enquanto profissional.
Necessidades biológicas
Eis alguns tópicos que pensamos quando desenhamos, na imaginação repentina, uma boa escola. Concordo que devemos resgatar a dignidade dos nossos estudantes, mas como fazê-lo? Será que numa escola imaginária como a recém-descrita a dignidade não seria um valor sobressalente, já que sobrepostas às dificuldades sistêmicas?
Ioschpe, parágrafo 2:
‘Quero crer que esse direcionamento acontece, na maioria dos casos, não por maldade, mas por se acreditar em uma premissa equivocada: aquela segundo a qual tudo que é bom para o professor, para o diretor e para uma escola, é bom para o aluno e que, portanto, aquilo que beneficia o professor, diretor ou escola acabará por indiretamente beneficiar o aluno. Talvez isso seja uma herança de uma visão paternalista da escola, que seria um segundo lar para a criança, e os professores seus pais temporários. A popularização, no Brasil, da chamada pedagogia do afeto contribui para esse sentimentalismo. Ocorre que desde o trabalho do biólogo Robert Trivers, na década de 70, se sabe que há interesses conflitantes entre os pais e sua prole, que já surgem mesmo antes do nascimento – o feto quer mais nutrientes do que seria saudável para a mãe oferecer, por exemplo. Depois do nascimento, os genes que a criança herda do pai ativam uma maior demanda pelo leite materno na criança. Quando um bebê tem uma rara alteração genética que lhe dá duas cópias maternas de uma parte do cromossomo 15 (síndrome Prader-Willi), ele mama menos e chora mais fraco quando está com fome. Se esse conflito é normal mesmo no seio familiar, não deveria causar espanto que professores, diretores e alunos tenham interesses divergentes.’
Resposta:
Não se trata de identificar que tudo aquilo que é bom para o corpo docente vai, direto e reto, ser bom para o aluno. Não concebemos a relação tão simplória e maniqueísta. Entretanto, o indivíduo professor carrega um corpo humano, este repleto de necessidades biológicas, de obrigatória alimentação e de cuidados cotidianos. Ele precisa comer, beber, dormir, tomar banho, vestir-se, pagar contas, se movimentar pela cidade, enfim, coisas que o cidadão normal deveria ter o direito de fazer com segurança e estabilidade no tempo.
Fatores ‘benéficos’
Não se esqueçam que aqui sempre estamos nos referindo ao aluno como peça-chave na dinâmica do sistema escolar. Mas como os alunos, os professores também são seres humanos, e também possuem essencial papel na mesma dinâmica. Portanto, ouvir as reivindicações do professorado, negociá-las, melhorar a situação desses sujeitos, proporcionar-lhes dignidades não existentes no cenário atual… não há nada de absurdo nesse ponto de vista, pelo contrário.
Sobre a referência ao especialista biólogo, nada falaremos com profundidade, pois desconhecemos a área. Não obstante, o fato de professores, discípulos, direção, faxineiros, e todas as demais partes envolvidas no sistema escolar demandarem interesses distintos pouco ou nada acrescenta. Sob a forma dos seus discursos próprios enquanto atores sociais inseridos em um campo de disputa [no sentido de campos para Pierre Bourdieu], ou sob a lente de uma própria compreensão investigativa exterior, razoavelmente problematizante, tal assertiva surge como base de averiguação pertinente, porém de rápida percepção. Mais uma frase apenas: não sabemos até que ponto depositar nas costas de uma teoria biológica a relação social derivada dos protagonistas envolvidos no campo escolar impulsiona tanta riqueza em significado comparativo, ou quiçá metafórico.
Ioschpe, parágrafo 3:
‘Muitos dos fatores que a literatura empírica revela serem importantes para o aprendizado de uma criança são desfavoráveis aos anseios comumente manifestados pelo magistério, e muitos dos itens pedidos constantemente por educadores não têm efeito sobre a aprendizagem dos alunos. O absenteísmo do professor e a utilização do tempo de aula para a realização de exercícios ou de cópia de textos do quadro-negro são fatores que facilitam a vida do professor e prejudicam o aprendizado da criança, por exemplo. O uso constante de dever de casa e avaliações para medir o conhecimento do aluno sobrecarrega o tempo do professor, mas é muito positivo para o aprendizado das crianças. Ao mesmo tempo, fatores que são usualmente apontados como benéficos – maior salário aos professores, salas de aulas menores, professores com mestrado – não se mostram positivos para o aprendizado dos alunos.’
Qualificados, motivados
Resposta:
Estamos curiosos. Quais são os fatores que a literatura empírica aponta como desfavoráveis aos anseios do magistério? Desfavoráveis? Se os itens citados por educadores como necessários ao processo de aprendizagem não servem, quem estaria autorizado a dizer o que serve e o que não serve para o melhor desenvolvimento dessa dinâmica? Professores ganham pouco dinheiro, são pessoas, têm demandas, contas etc. Não conseguimos encontrar o elo da afirmação que defende a idéia de que melhores salários para professores não ajudam numa satisfação dos mesmos, refletida de alguma forma no ambiente e no desempenho profissional. Pessoas com uma vida financeira estável e o mínimo de conforto não tenderiam a trabalhar melhor do que pessoas estressadas, sempre ‘correndo atrás da máquina’, com dificuldades de manutenção dos gastos básicos? Salas com menos estudantes, com um contato maior entre professores e alunos, conhecimento mútuo, mais atenção aos nossos filhos, tudo isso não é positivo ao ensino?
Ioschpe, parágrafo 4:
‘Uma das fontes do nosso atraso educacional é o fato de a maioria das nossas políticas públicas identificar como finalidade aquilo que na verdade é apenas um meio. Falamos de escolas bonitas, diretores treinados, professores diplomados como se isso fosse o objetivo do ensino. Não é. O objetivo é que o aluno aprenda. Se depois de todos os malabarismos e esforços o aluno continua patinando, então todo o trabalho não valeu nada. O aprendizado do aluno deveria ser o objetivo e o teste de toda ação do setor.’
Resposta:
Sem responder ao questionamento sobre o objetivo do ensino, comentaremos apenas o fato de que, se os meios não correrem bem, se o percurso até alcançar o fim ideal não transcorrer de maneira qualificada, com pessoas qualificadas, o resultado não será positivo. Para seguir nos objetivos educacionais do senhor Ioschpe, o aluno só aprenderá se esse caminho for atravessado e entrecruzado por profissionais qualificados, motivados, satisfeitos, em todas as partes que constituem o ‘setor’.
Um mínimo de democracia
Observação final: lembramos que a educação pública não é uma mercadoria que está à venda no mercado financeiro, não é um produto a ser comprado ou vendido. A educação de qualidade para a concretização de uma República democrática tem de passar pelo conceito de direito da população, mesmo que oferecida por iniciativa de escolas particulares, senão não fará sentido algum. Portanto não adianta apenas importarmos teses e divagações do campo empresarial para a educação e sentarmos em nossas poltronas com um ar esperançoso: pronto, assinamos a fórmula do sucesso. Não, definitivamente não basta.
Ioschpe, parágrafo 5:
‘O Ministério da Educação deu um passo positivo nesse sentido ao instituir, no seu Plano de Desenvolvimento da Educação, um sistema de metas de aprendizagem que devem ser cumpridas por cada município. Pecou, porém, ao não instituir punição nenhuma a quem não as alcançar. Como já escrevera Hobbes em 1651: os acordos, sem a espada, não são nada além de palavras.’
Resposta:
Citar Hobbes, pensador contratualista, situado no contexto da queda do absolutismo europeu, nos parece, no mínimo, anacrônico. Na linha de Hobbes, o poder dos soberanos deveria ser absoluto, sem limites. O Estado não poderia ser contestado ‘porque já foi mostrado que nada que o soberano representante faça a um súdito pode, sob qualquer pretexto, ser propriamente chamado de injustiça ou injúria [HOBBES, Thomas. Leviatã. Coleção ‘Os Pensadores’. São Paulo: Abril Cultural, 1974. Páginas 134-135]’. Hoje, depois de um período turbulento de muito sofrer, controlado pelos militares organizados no poder, vivemos sob uma democracia representativa (representação proporcional), as listas de ordenação interna dos partidos são abertas, e o voto é obrigatório a todos os cidadãos [para mais informações sobre a dinâmica política do Brasil atual, sugiro o muito didático material do professor Jairo Nicolau, intitulado Sistemas Eleitorais (cf. NICOLAU, Jairo. Sistemas Eleitorais. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004)]. Enfim, uma República na sua acepção mais moderna, talvez – ou, quem sabe, um pouquinho disso apenas, o mínimo de democracia. Em realidade, Hobbes não figuraria na nossa lista adequada para interferir na problemática do campo educacional, visto o momento histórico vigente.
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Jornalista pela PUC-RS; graduando em Licenciatura de Ciências Sociais pela UFRGS; pesquisador-bolsista do Departamento de Ciência Política da UFRGS