Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cinismo e andar de caranguejo

É muito célebre uma passagem em um documento do nosso período colonial na qual os portugueses sem braços escravos andariam como que caranguejos arranhando a beira da praia. A imagem do crustáceo que anda de lado parece ter se fixado em nossas instituições. Tomamos por exemplo as alterações da última versão do PNDH (Programa Nacional de Direitos Humanos) que procuraram atender alguns setores da sociedade, entre estes a Igreja,

Em O Globo (14/5/2010), na matéria ‘Igreja ainda não está satisfeita com as mudanças no artigo sobre aborto‘:

‘O secretário-geral da CNBB, dom Dimas Lara, comemorou em parte as mudanças. Ele considerou ótima a manutenção de símbolos da Igreja em locais públicos, mas disse desconfiar das mudanças na parte que trata do aborto.’

Também na Folha de S. Paulo (14/5/2010), ‘CNBB pede voto em político que rejeita o aborto‘:

‘O arcebispo de Mariana (MG), dom Geraldo Lyrio Rocha, presidente da CNBB, disse ontem, ao ser questionado sobre o aborto, que os católicos não devem votar em um candidato que `defende posições que são opostas às defendidas na Igreja Católica´.’

Sobre a questão dos símbolos religiosos em locais públicos já havíamos observado, em ‘Religiosidade no Brasil: perpassando o público e o privado‘ que no Brasil o Estado não é laico. Nada mais normal seria a retirada de qualquer símbolo religioso em toda e qualquer repartição pública, mas a nova versão do PNDH abre mão deste princípio. Arriscamos a hipótese de que a prática da manutenção de objetos religiosos, seja em escolas hospitais ou qualquer órgão público, se configura numa espécie de resistência simbólica à forma como foi constituída a República, laica, com a ausência de participação popular.

Passo importante

Na medida em que, no período do Império, Estado e Igreja estavam interligados, manter Bíblias ou crucifixos nas repartições públicas pode ser considerado como prática de resistência ao regime republicano. Ao que parece, o governo do presidente Lula abriu mão desta questão que mesmo sendo uma forma de resistência não deixa de ser também uma violência simbólica. Isso considerando que pessoas que praticam religiões de tradição não cristã também pagam seus impostos e, de acordo com essa lógica, também têm direito a ter seus símbolos religiosos representados em ambientes públicos.

No que diz respeito à descriminalização do aborto, o documento pareceu manter uma posição ambígua: ‘O aborto não foi excluído de maneira incisiva. Quando diz que é problema de saúde pública, o que isso quer dizer? (…) se for apenas outra forma de justificar o aborto, nada muda – disse dom Dimas Lara’. Nesta questão a Igreja continua com o argumento da defesa da vida em abundância. Além de ser mais um indicativo da natureza fossilizada da Igreja, este argumento também constitui um grandessíssimo cinismo.

Nada mais plausível a instituição se preocupar em resgatar sua dignidade frente à crise que atravessa, referente aos padres pedófilos, antes de continuar a empunhar a suposta bandeira de vida em abundância e defender a continuidade da criminalização do aborto. Isso tendo em vista que alguns de seus funcionários têm se mostrado verdadeiros violadores dos direitos humanos. Parece que a instituição não pensa assim e dá uma grande contribuição para que o país continue considerando legalmente que aborto é crime na medida em que a CNBB recomenda a seus fiéis a não votar em candidatos políticos que apóiam a legalização do aborto.

No início do século 17 os portugueses resolveram seu problema, de falta de mão de obra para trabalhar, com a tragédia da escravidão negra para que os fidalgos portugueses não continuassem arranhando a praia como caranguejos. Nosso dilema agora é saber como o Brasil vai se livrar de tradições e mentalidades obscurantistas, um passo importante para definir o que consideramos direitos humanos e direitos particulares.

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Professor de História, Ponta Grossa, PR