Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Congresso vai discutir nova regulamentação

A internet é considerada uma das experiências democráticas mais bem-sucedidas do mundo. Mesmo assim, não faltam governos e instituições que tentam restringir as atividades dos internautas. No Brasil, felizmente, esse tipo de censura não acontece. Existe, porém, uma série de outras ameaças à privacidade e à liberdade dos usuários da rede de computadores. Na tentativa de evitar esses abusos, o Executivo enviou ao Congresso, no fim do mês passado, um anteprojeto de lei que garante direitos básicos dos cidadãos na web. O chamado Marco Civil da Internet ainda deve passar por uma longa discussão no Legislativo, mas, segundo especialistas, há aspectos do texto que deveriam valer o quanto antes.

Um desses pontos críticos diz respeito à neutralidade na rede. Isso significa que a empresa operadora do serviço de internet não poderá mais interferir na conexão, ou seja, estará proibida de filtrar os conteúdos que chegam aos usuários. Parece óbvio — e as prestadoras de serviço não reconhecem a prática —, mas há muitas reclamações de internautas e de pessoas que acompanham o setor. “O princípio da neutralidade na rede é algo bastante positivo no Marco Civil, porque ele não é respeitado atualmente”, afirma Magdiel Santos, presidente da Rede Glogal Info, a maior associação de provedores do Brasil.

Para fazer com que a web funcione, o usuário precisa contratar dois tipos de serviço: o da operadora, que fornece a conexão entre o computador e os servidores da internet (via cabo, rádio, satélite, wireless ou celular) e o do provedor, que disponibiliza coisas como o acesso a e-mails e a hospedagem de páginas. O problema é que, muitas vezes, a operadora limita a conexão contratada para atender a seus interesses empresariais. “Uma teleoperadora, por exemplo, pode barrar portas de acesso a serviços de VoIP (telefonia via internet), porque, afinal, é bom para si mesma que essa tecnologia não deslanche”, observa Magdiel Santos.

Em outros países, a prática é, inclusive, protegida por determinações judiciais. “Nos Estados Unidos, há uma decisão que garante à Comcast (uma operadora de internet e TV a cabo) uma espécie de filtragem por horário. Voz sobre IP, vídeos, isso só funciona como deveria em algumas horas do dia”, conta Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC e especialista em cultura digital. Muitas dessas limitações são impostas sob o argumento da proteção à pirataria na internet. Amadeu diz que as operadoras costumam proibir conexões P2P — na qual os IPs formam uma rede para a troca de arquivos, um dos formatos mais comuns para o download de músicas.

“O Marco Civil vem consolidar alguns direitos na rede de computadores e, se isso não for feito, haverá cada vez mais pressões para reduzir a liberdade dos usuários”, reforça o professor. Ele e outros profissionais concordam que o princípio da neutralidade é benéfico e necessário. Há, entretanto, uma brecha no texto que foi enviado ao Congresso — a expressão “conforme regulamentação” — e que, certamente, vai gerar muitos debates.

Outro ponto importante do projeto de lei é sobre a responsabilidade dos provedores de serviços na web. Basicamente, eles não poderão ser penalizados por atos ilegais dos usuários. “Responsabilizar o provedor não é coerente, é o mesmo que cobrar de um pedestre a fiscalização sobre os veículos que estão em estacionamento irregular”, compara Demi
Getschko, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Esse entendimento, inclusive, já vem sendo aplicado pelo Judiciário, quando decide, por exemplo, não multar o Facebook por um comentário racista que esteja no site.

Divergências

Há aspectos do Marco Civil, porém, que não são unânimes. Um deles trata da guarda de informações pelos provedores de internet. Toda vez que um usuário acessa um site, o prestador de serviço registra o seu IP e o horário do acesso. A empresa também conseguiria saber coisas ainda mais detalhadas, como os endereços pelos quais o consumidor do serviço passou e quanto tempo permaneceu em cada página. Esse tipo de “observação” está vetada no texto. “Ler um jornal na internet é muito diferente de pegar a edição impressa e levar para um café. Na web, é possível saber exatamente quais foram as matérias que mais chamaram a sua atenção”, observa Getschko.

Embora a privacidade esteja garantida no projeto de lei, há uma exigência para os provedores: que eles guardem os logs de acesso pelo período de um ano (a informação sobre o IP e a hora de entrada e saída na rede). Na verdade, a regra não vai atingir todas as empresas, apenas as maiores do Brasil, denominadas “administradoras de sistemas autônomos”. “Nossa ideia original era que a guarda de dados fosse pelo período de três anos, mas entramos em acordo com os outros participantes”, lembra o diretor do CGI.br.

O problema é que essa determinação gera uma série de dificuldades para os provedores. “O pequeno empresário do setor é bastante cético em relação ao Marco Civil. Ter controle sobre os logs de acesso é recomendável, mas isso precisa ser definido com cautela”, ressalva Magdiel Santos, da Rede Global Info. A maior preocupação de Santos ocorre devido à imensa quantidade de IPs que devem invadir a rede nos próximos anos. Antigamente, as pessoas tinham um computador em casa e outro no trabalho, eram dois IPs, fácil de controlar. Com a chegada da portabilidade, as coisas ficaram mais complicadas. E tendem a piorar: no futuro, todos os eletrodomésticos de uma casa, por exemplo, estarão conectados. “Meu celular, meu microondas, tudo terá a sua identidade na web. E aí nós vamos ter que guardar logs de uma geladeira?”, questiona o professor Amadeu.

Isso sem falar nas discordâncias que devem surgir durante a avaliação dos parlamentares. Há, no Congresso, quase uma dezena de leis que tratam da internet, a maioria sobre crimes na rede. E a confusão sobre os objetivos do Marco Civil — que não é tipificar crimes, e sim garantir direitos dos cidadãos — pode atrasar sua aprovação. “Não creio que o texto será avaliado de forma rápida. Haverá muitos questionamentos, ainda mais porque as pessoas não estão acostumadas com o tema”, opina Magdiel Santos.

Para Demi Getschko, é justamente esse caráter “nebuloso” da internet que faz do Marco Civil um instrumento necessário. “O texto não resolve questões específicas, mas serve como pano de fundo para futuras discussões sobre a rede”, diz. “Eu acharia errado tentar resolver um problema pontual antes de estabelecer qual é o horizonte em que estamos trabalhando, definindo as responsabilidades de cada ator.”

Mordaça virtual

Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) apontou que a internet está sob censura em várias partes do globo. Os mecanismos de controle incluem deste a captura de blogueiros até filtragem de resultados em sites de busca. Os principais “ditadores” eram China, Cuba, Irã e países onde ocorreu e vem ocorrendo a revolta árabe. Em junho, a ONU consagrou o acesso à rede como um direito humano.

Longo caminho

O Marco Civil da Internet chegou ao Congresso em 25 de agosto, sob o número 2.126/11. Ele vai passar por quatro comissões para, depois, ser levado à votação no Plenário. Antes de chegar aos parlamentares, o texto foi discutido durante dois anos, em fóruns e por meio de consultas públicas virtuais, com participação de representantes do governo, das instituições de educação e pesquisa, de especialistas em internet e de empresários do setor.

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[Carolina Vicentin, da Redação do Correio Braziliense]