Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Cotas, ideologia e matemática

Pela primeira vez escrevo a este Observatório, mesmo sendo leitor/telespectador há 8 anos. O motivo da minha escrita é a reportagem ‘Qual é a cor’ da edição 1.916 de IstoÉ. A reportagem é assinada por Antonio Carlos Prado e conta com a colaboração de mais sete repórteres. Há muito tempo não leio uma reportagem tão mal-escrita. A tese editorial do repórter é: ‘O estatuto da igualdade racial é racista e temos que desqualificá-lo’. E com esta tese o repórter vai a campo para prová-la. Primeiramente, afirma que a questão é matemática, e não ideológica, desqualificando o sentido do conceito ‘ideológico’ em defesa de uma suposta cientificidade matemática.


Decerto que um tema que diz respeito ao modo como uma sociedade se vê e como esta sociedade se organiza e se relaciona com tema tão polêmico não pode estar relacionado exclusivamente à matemática, e sim à ideologia. É preciso que o autor defina o que entende por ideológico. Prosseguindo, o autor fala em mérito e demérito sem discutir o que entende de fato por estes conceitos. Será mérito estudar nos ‘melhores’ colégios, freqüentar aulas de inglês, espanhol, fazer aulas particulares e depois passar no vestibular? É certo que a competição para o vestibular não é justa, como afirma o autor da reportagem. Ainda se não podemos saber quem de fato é negro ou branco, como o autor ‘descobriu’ que a estudante Rachel Grynszpan, que fraudou o sistema de cotas, é ‘branquíssima’?


Países civilizados


Outro ‘erro’: o autor confunde as categorias utilizadas pelo IBGE. Este não emprega a categoria mulato em seus levantamentos e, quando se fala em negros, está se falando das categorias pardo e preto dos levantamentos do IBGE. Percebe-se que o autor da matéria tem muito pouco conhecimento sobre história do Brasil, quando afirma: ‘Olhe-se a questão do mercado de trabalho e se terá o conflito racial com a chancela oficial – conflito que não se viu no Brasil nem na época da escravidão, quando os colonizadores portugueses traficaram da África para cá, entre os séculos XVI e XIX, cerca de 3,5 milhões de negros’.


Acho que não entendi direito, o autor afirma que não houve conflito entre brancos e negros no período escravista? Este trecho é, no mínimo, revoltante. Sugiro ao autor como leitura introdutória, os livros Rebeliões da senzala (Quilombos, insurreições, guerrilhas) (São Paulo, Zumbi, 1959) e Os quilombos e a rebelião negra (São Paulo, Brasiliense Ed., 1981), ambos de Clóvis Moura.


Continuando a série de bobagens o autor escreve: ‘O conceito de raça já foi derrubado há muito tempo nos países civilizados’. E onde seriam estes países civilizados? O conceito de civilização está no mínimo mal empregado neste trecho. Existiriam então países incivilizados? Decerto que o conceito de raça como categoria biológica não faz sentido. Contudo, ao falarmos de raça estamos falando de categoria social e historicamente construída. Não estamos falando de categoria estanque e ahistórica. Curiosamente, uma das fontes da reportagem, a antropóloga Yvonne Maggie, construiu sua carreira acadêmica falando de ‘negros’.


Sem novidade


‘A exclusão atinge o negro e o branco, a pobreza não escolhe raça’. Esta afirmação de uma das fontes da reportagem carece de sustentação, uma vez que existem dezenas de pesquisas mostrando exatamente o contrário, desde dados oficiais de Ipea, IBGE, Dieese a militantes do movimento negro e até de intelectuais brancos. Ao autor da reportagem recomendo especificamente três textos de fonte diversas. Um é ‘Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer: tópicos em saúde da população negra no Brasil’, in Saúde da população negra no Brasil: contribuições para promoção da equidade (Brasília, Fundação Nacional de Saúde, 2005), de Fernanda Lopes; o segundo é Desigualdades raciais no Brasil, de Ricardo Henriques, texto para discussão (Ipea, 2003). E o terceiro: ‘A desigualdade racial no mercado de trabalho’ (Boletim Dieese, edição especial, nov. 2002). O primeiro de uma intelectual e ativista negra, o segundo de um intelectual branco, e o terceiro, de órgão sindical.


Para finalizar devo afirmar que poucas vezes vi tanta ‘falta’ de informação reunida em um mesmo texto. Só para lembrar ao senhor Antonio Carlos Prado, a experiência de ação afirmativa no Brasil não é novidade, basta ver o exemplo dos imigrantes europeus que ganharam terras do governo brasileiro no início do século 20.


Se era uma reportagem, não parece.

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Antropólogo, ativista do Enegreser, coletivo negro do Distrito Federal e entorno, 23 anos, Brasília