Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Criança que passa em vestibular mede qualidade da educação?

A matéria ‘Um vestibular que até criança passa’, veiculada no Fantástico do dia 04 de maio, indica a limitação e a superficialidade que temas como a educação e o ensino superior são tratados por segmentos da mídia brasileira. O enfoque sobre vestibulares de faculdades particulares, em que crianças de 9 a 11 anos seriam capazes de passar, desvia a atenção do público do cerne real dessa questão: as universidades brasileiras (sejam elas particulares ou públicas) estão formando profissionais e cidadãos de qualidade para a sociedade?

Toda matéria de Vinícius Dônola está direcionada para responder à pergunta: ‘Por que as universidades particulares fazem vestibulares tão fáceis?’ A resposta de especialistas, professores e do repórter é que essas instituições precisam de alunos para manter suas estruturas e seus negócios, com um interesse menor pela capacidade argumentativa dos estudantes. Sintetizando, através da fala de um entrevistado, ‘é um grande mercado de diplomas’.

A pertinência do tema poderia estar garantida caso o repórter direcionasse sua matéria, por exemplo, para os problemas que os professores enfrentam nessas instituições, visto que, por vezes, essa dependência do pagamento de mensalidades interfere na avaliação pedagógica. Não são poucos os casos de professores demitidos por reprovarem alunos, exigirem trabalhos acadêmicos de maior fôlego ou aplicarem provas que exijam uma maior capacidade de raciocínio.

Decorando macetes

Contudo, o eixo da matéria é outro. Trata especificamente do processo de seleção dos acadêmicos nas universidades, com mais destaque para como uma criança do ensino fundamental é capaz de passar em alguns vestibulares. Esse direcionamento subtrai questionamentos sobre a qualidade dos ensinos fundamental e médio em desenvolver a capacidade argumentativa dos estudantes, sobre o déficit de vagas nas universidades brasileiras (principalmente as públicas), a falta de critério para a abertura de faculdades (sem estudos de demanda e de capacidade técnica das instituições) e, principalmente, sem a indicação de que alunos que entram em faculdades particulares prestando vestibulares fáceis não estariam suficientemente preparados no término de suas graduações. A matéria deixa de se importar com um contexto muito mais amplo e pertinente para se preocupar com uma situação insólita (o ato de uma criança passar no vestibular).

A reportagem contém equívocos que revelam a parcialidade por um tipo de modelo educacional ou a limitação ao pensar um único modo de inclusão dos brasileiros na universidade (o vestibular) como certo e único. Talvez a frase que mais revele o despreparo do repórter ao abordar o tema seja: ‘A prova do vestibular existe para evitar que alunos não qualificados consigam ingressar na universidade…’

O primeiro paradoxo dessa afirmação é indicar que estudantes que passaram pelo ensino fundamental e médio, com processos de avaliação que perpassam mais de 10 anos de formação, não estejam aptos para entrar em uma universidade. Ou seja, o repórter trata a formação universitária como desconexa de um projeto educacional anterior a ela. O segundo paradoxo é concordar com a lógica de cursos pré-vestibulares e grande parte dos colégios particulares em preparar os estudantes do ensino médio com o único foco de passar no vestibular, sem qualquer importância pela formação que essa fase do ensino tem a responsabilidade de transmitir. Assim, o repórter credita aos aprovados no vestibular uma capacidade maior do que aqueles que não passam, ainda que muitos dos primeiros tenham passado mais tempo decorando macetes que construindo conhecimento.

‘Melhores’ e ‘problemáticos’

O equívoco fica completo quando o repórter chama 21 alunos de 9 a 11 anos para realizarem o vestibular de uma universidade particular. O fato de muitos desses alunos terem a capacidade de passar revela por um lado a facilidade excessiva da prova, mas por outro, que a entrada por processo de seleção só é necessário para quadros em que o número de interessados excede o número de vagas.

O que o repórter chama a atenção, sem contudo compreender plenamente, é que essas crianças não estão aptas para cursar uma graduação apenas por causa do vestibular, mas por não terem passado por todas as fases de formação necessárias para se atingir o amadurecimento de suas escolhas profissionais e responsabilidades sociais. E, principalmente, que o vestibular poderia ser eliminado em situações em que existam vagas sobrando.

A matéria valoriza ainda conclusões apressadas e generalizações. Uma delas é induzir que um pró-reitor de universidade particular entrevistado está interessado apenas nas condições financeiras do estudante por não acreditar no mecanismo de avaliação do vestibular. Ou ainda, pressupor, a partir da fala de um representante das universidades particulares, que os ‘melhores’ alunos do ensino médio vão para as universidades públicas e os ‘problemáticos’ para as particulares. Basta visitar universidades particulares para comprovar que essa regra não corresponde à situação da grande maioria dos acadêmicos (composta muitas vezes por trabalhadores que não podem cursar graduações durante o dia e por aqueles que preferem pagar um curso superior ao invés de gastar quantias superiores em cursos pré-vestibulares).

Questionamento constante

O problema do excessivo interesse da iniciativa privada pelo mercado estudantil universitário é pauta para matérias com inúmeros enfoques. Para além da excessiva facilidade de processos seletivos, fica aqui o desafio para nós, jornalistas, de comprovar que muitas ou algumas dessas universidades não formam profissionais competentes ou que elas não contemplam plenamente as esferas de ensino, pesquisa e extensão (tripé básico da universidade). Essa postura passa por uma atuação vigilante diante dos processos de permissão de abertura de novos cursos e, principalmente, das avaliações da qualidade dos cursos em funcionamento empreendidas pelo Ministério da Educação.

Outro desafio é questionar o que o vestibular representa em um sistema educacional e social que supervaloriza a competição, a classificação em rótulos como ‘melhor’ e ‘atrasado’ e a necessidade de uma completa adequação a um sistema de aprendizado monolítico que desvaloriza a criatividade e a construção autônoma do conhecimento. Para o jornalista se colocar numa postura mais neutra, nesse caso, não basta apenas ouvir o maior número de fontes possíveis, mas exercer um constante processo de questionamento capaz de suscitar respostas que revelem as incongruências do que está dado como certo.

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Jornalista