Passados quase dois anos em que 154 vidas foram ceifadas em face da colisão – em pleno vôo a nível de cruzeiro – entre o Boeing da Gol e o jato Legacy, e pouco mais de um ano do acidente com o Airbus A-320 da TAM, próximo ao aeroporto de Congonhas, que vitimou mais 200 pessoas, mudaram-se alguns nomes e tomaram-se algumas medidas administrativas.
Todavia, não nos iludamos, a crise continua, mesmo porque, ao contrário do que imaginamos, pouca coisa mudou e, infelizmente, a vida de 354 pessoas não foi suficiente, até o momento, para que mudanças estruturais fossem feitas em prol da segurança e da vida das pessoas.
A cada problema ou incidente, o cenário de caos nos aeroportos se reproduz, assim como se repetem as mesmas justificativas: aumento do volume de passageiros e de tráfego aéreo e/ou condições meteorológicas adversas, apenas para ficar nas duas explicações mais recorrentes.
Isto sem falar nas ocorrências diárias de acidentes ou quase-acidentes que não são reveladas à sociedade em razão da lógica da gestão militar que trata, equivocadamente, a questão do tráfego aéreo civil como de defesa e segurança nacional e enxerga como inimigo quem divulga tais informações.
‘Grampeado’ e monitorado
Temos conhecimento de que as ocorrências de quase colisões e outros incidentes continuam a ocorrer diariamente pelos céus do Brasil. O que mudou foi que a operação de ‘guerra’ da aeronáutica para isolar e afastar as ditas ‘lideranças negativas’ logrou pleno êxito. Até nós temos dificuldades de obter informações que antes nos eram repassadas. Em pleno regime democrático, assistimos a perseguições, punições e prisões sob o pálio da hierarquia militar de trabalhadores que ousam denunciar as falhas do sistema, vale dizer, de quem zela pela vida dos usuários do transporte aéreo.
Como amplamente divulgado à época, fui processado pelo comandante da Aeronáutica numa atitude de notória intimidação e perseguição. Quando esteve na CPI do Apagão Aéreo na Câmara dos Deputados, no ano passado, questionado pelo deputado Ivan Valente e Luciana Genro sobre o motivo pelo qual havia entrado com uma representação contra mim, o comandante Juniti Saito respondeu: ‘Esse procurador fica defendendo a desmilitarização.’ O deputado citado argumentou: ‘Mas ele tem direito de defender o que quiser. Eu também defendo a desmilitarização. Quer dizer que quem defende o que o senhor não gosta, ou não concorda, o senhor persegue.’ O comandante não respondeu.
Mais, pela primeira vez torno público o seguinte fato. Alertado por diversos controladores de que estaria sendo ‘vigiado’ pelo comandante, contratei um especialista para fazer uma varredura nos meus telefones. Qual foi minha surpresa quando soube que eu não estava somente ‘grampeado’, mas monitorado, isto é, toda vez que recebia ou fazia alguma ligação tinha outra pessoa ouvindo tudo.
Falta de transparência
Trata-se do ‘poder invisível’ dos militares, prova de que estamos longe da democratização das Forças Armadas. Com efeito, os militares são os intocáveis da Nação. Gerem o sistema sem dar satisfação a ninguém, mentem, perseguem, monitoram, punem sem qualquer questionamento e controle social.
Lamentável que tudo isso ocorra sob as vistas de um ex-ministro da mais alta Corte de Justiça do país. Os interesses políticos, inclusive do próprio ministro da Defesa, falam mais alto do que a aplicação da Constituição Federal, que reserva às Forças Armadas a defesa da Pátria e o respeito aos poderes constituídos.
A chegada de Nelson Jobim ao cargo de ministro da Defesa trouxe-nos uma grande expectativa, não apenas pela sua capacidade de articulação política, mas, sobretudo, por sua formação jurídica, aperfeiçoada pela sua passagem pela mais alta Corte de Justiça do país, o STF.
Esperava-se que o Ministério da Defesa fosse efetivamente implantado no país, colocando a Aeronáutica sob o comando do Ministério e, conseqüentemente, os fatos relativos ao tráfego aéreo, de notório interesse público, viessem, finalmente, a ser revelados e discutidos democraticamente com a sociedade.
Sob o aspecto jurídico, não há como afastar-se o entendimento de que existe uma incompatibilidade flagrante entre o direito de informação consagrado constitucionalmente e a gestão militar do tráfego aéreo, caracterizada pela falta de transparência e controle social.
Informação sobre falhas
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) declarou, no recuado ano de 1979, que a segurança aérea depende de condições adequadas de trabalho para os controladores de tráfego aéreo, recomendando, inclusive, a adoção de jornadas de trabalho reduzidas e aposentadorias especiais, considerando as situações de estresse e tensão a que são submetidos diariamente estes trabalhadores.
No Brasil, não obstante, a má-formação, a deficiência do idioma inglês, do excesso de jornada, do assédio moral, de instalações inadequadas, de constantes falhas nos equipamentos (radares e rádios-freqüência), de ordens tecnicamente incorretas e inseguras – mas que devem ser cumpridas, em face da hierarquia militar –, da incidência de três regimes jurídicos distintos para funções iguais, de salários aviltantes, da colocação de controladores da defesa aérea para coordenar o tráfego aéreo civil etc., as autoridades teimam em manter fora da pauta, tema essencial para a solução da crise. Com efeito, desde que a crise aérea foi revelada à sociedade brasileira, em 29 de setembro de 2006, nenhuma medida foi tomada para melhorar as condições de vida e de trabalho do elemento humano do sistema. Pelo contrário, a situação dos controladores de tráfego aéreo brasileiros, de lá para cá, mormente os militares, somente piorou, com o acirramento das perseguições e punições.
Ao contrário do que ocorre em outros países da Europa e nos EUA, onde os trabalhadores são estimulados a relatarem as ocorrências e falhas do sistema, utilizando-se tal procedimento como uma ferramenta de prevenção, no Brasil, quem age desta forma – defendendo a vida – é severamente punido. Isto porque, para se trabalhar com uma maior margem de segurança, é imprescindível a circulação democrática da informação sobre as falhas do sistema visando ao seu contínuo aperfeiçoamento.
Voar é seguro?
Não restam mais dúvidas de que o melhor caminho – seja do ponto de vista técnico, administrativo, operacional ou de segurança – é a desmilitarização do tráfego aéreo civil, permanecendo com a Aeronáutica a atribuição constitucional de defesa do espaço aéreo. Essa foi a conclusão do Grupo de Trabalho criado na gestão do ex-ministro Valdir Pires que, por defender esta tese, foi mais rapidamente ‘fritado’ pelo comando.
O problema, como fica evidente, é de natureza política. Vale dizer, ter-se-á ou não vontade política de desagradar aos militares da Aeronáutica que, não obstante sua notória incapacidade administrativa para gerir o setor, se apegam de forma visceral a este nicho de poder. Ademais, o sistema de controle de tráfego aéreo, extremamente dinâmico – que demandam soluções rápidas e eficientes – é incompatível com a burocracia militar.
Outra constatação inarredável que pode ser feita em relação a esta crise aérea é que ela vem sendo conduzida de forma emocional e pouco factual, com arroubos de nacionalismo tupiniquim e frases de efeito que não encontram ressonância na realidade.
Com efeito, insiste-se na afirmação de que voar no Brasil é seguro.
Afinal, o que é seguro?
US$ 5 milhões por pessoa
A palavra segurança pode ser definida como a ausência de riscos intoleráveis, um conceito largo, aberto mesmo, e que contém, por isso, uma margem de tolerabilidade ao risco. Sim, pois, como se sabe, o risco está sempre presente, já que não pode ser excluído completamente.
Assim, um sistema é seguro quando a maioria dos riscos dentro dele são identificados, tratados, divulgados e utilizados como ferramenta de prevenção, com resguardo da confidencialidade de quem registra a ocorrência e, vale dizer, a partir do momento em que se reconhece que a divulgação da falha constitui a primeira etapa para a prevenção dos futuros problemas (acidentes ou quase-acidentes), não há qualquer implicação disciplinar ao trabalhador do sistema, muito ao contrário.
Mas, então, o que quer dizer a frase ‘voar no Brasil é seguro’? Por mais inaceitável que possa parecer, a vida humana, na avaliação dos gastos com segurança, possui um preço, isto é, tem um valor.
Sabe-se que nos países da Europa e da América do Norte, esse valor é estimado em US$ 5 milhões por pessoa. Assim, se a medida de segurança a ser implantada custa US$ 20 milhões e, com isso, se estima que tal valor vai custar a vida de 10 pessoas, temos um gasto de US$ 2 milhões por pessoa e assim, o investimento vale a pena. Se custa mais, não vale a pena e assim o risco de perder vidas, é ‘aceitável’.
Risco persiste
Esse valor pode mudar de uma sociedade para outro, de um país para outro. Assim, por exemplo, na África, Rússia, China, a palavra seguro pode ter definição distinta daquela que existe nos Estados Unidos e na Europa.
Neste sentido, é importante perquirir qual a definição das autoridades e do governo brasileiro para a palavra segurança. Quatrocentos mortos por ano é bom, é aceitável? 354 mortos por 40.000 ou 50.000 vôos ou horas de vôo, é o tolerável pelo governo brasileiro? É aceitável? Importante registrar que tal comentário reflete a lógica do capital, e não a opinião do autor deste artigo.
O sistema de controle de tráfego aéreo é altamente complexo, abrangendo o elemento humano, as máquinas ou equipamentos e os procedimentos (manuais, acordos entre setores, regulamentos internacionais da Organização Internacional da Aviação Civil OACI).
Para que este sistema funcione adequadamente, de forma harmônica, necessita-se: (I) procedimentos adequados, duradouros e que sejam seguidos por todos, com prévio conhecimento e adaptação dos operadores do sistema; (II) boa formação dos operadores acerca dos procedimentos de vôo e controle detalhado das instruções; (III) sistema de segurança eficiente, no qual em uma processo contínuo, o bom funcionamento total do mesmo é supervisionado e verificado. Mais, onde os pequenos problemas são identificados e corrigidos em um circuito permanente, 24 horas por dia, todo dia.
Essas regras são seguidas pelos países que conseguiram reduzir ao mínimo possível a ocorrência de acidentes ou quase-acidentes, ou seja, ainda com todas essas medidas, o risco persiste.
Interesses das empresas
O que dizer do Brasil, onde, além de termos notórios problemas em todos os aspectos mencionados acima, temos as autoridades que peremptoriamente negam, mesmo diante de todas as evidências, a ocorrência de tais problemas e empresas aéreas que impõem os interesses de lucro sem qualquer admoestação do órgão encarregado de zelar pela segurança e a vida dos passageiros.
Ontem (03/09/2008), tivemos mais um capítulo a demonstrar a situação crítica do aeroporto de Congonhas.
Ainda que não tenhamos condições de afirmar qual a origem do incidente ocorrido hoje com um bimotor no aeroporto de Congonhas, continua a prevalecer o interesse econômico das empresas em manterem seus vôos em um aeroporto sem condições seguras para receber aeronaves tão pesadas e lotada de passageiros sem que haja uma área de escape.
As medidas restritas adotadas no início foram paulatinamente sendo removidas por pressão das empresas aéreas.
Até quando? Quando iremos priorizar a segurança e a vida dos passageiros fazendo uma reavaliação da operação do aeroporto de Congonhas?
Congonhas não pode mais ser um centro de distribuição de vôos para o país. O aeroporto deve operar de acordo com a sua capacidade, e não de acordo com o interesse exclusivo das empresas.
Repetição quase trágica
Felizmente nada aconteceu com os passageiros que estavam a bordo. Lembremos, porém, que quando do terrível acidente com o avião da TAM, há pouco mais de um ano, no dia anterior tivemos problemas com várias aeronaves, mas, ainda assim, não se fechou o aeroporto, pois isso significava prejuízos das empresas.
Está na hora da empresa regulatória deixar de ser um órgão de defesa dos interesses particulares das empresas e passar, efetivamente, a cumprir a função para a qual foi criada, qual seja, atender os interesses coletivos dos usuários.
Assim, para mim, a atitude hermética e defensiva de tratar a questão revela exatamente o oposto: os problemas são muitos e de natureza gravíssima. Enquanto membro do Ministério Público do Trabalho e cidadão usuário do sistema, sou forçado a concordar com o presidente da Federação Internacional dos Controladores de Tráfego Aéreo (IFATCA), Marc Baumgartner, o qual, em recente declaração, disse que ‘o próximo acidente aéreo no Brasil é apenas uma questão de tempo’.
Claro, como de praxe, assim como fizeram antes do acidente da TAM em julho passado, as autoridades rechaçaram violentamente a referida declaração.
Os que descartam essa possibilidade talvez não saibam, até porque, como se esperava, o tráfego aéreo civil – que não tem nada de segurança nacional ou defesa aérea – não deixou de ser uma caixa-preta, que, dia 22 de setembro de 2007, uma semana antes de completar um ano da tragédia da Gol-Legacy, todos os fatores contribuintes para o acidente voltaram a repetir-se: um cargueiro passou por Brasília e houve a mudança automática do nível de vôo. Mais à frente, houve a perda do radar e o controlador acabou coordenando o nível de vôo errado para Manaus, que o aceitou. Felizmente não havia nenhuma aeronave em rota oposta. Este fato foi registrado no livro de ocorrências do ACC Brasília.
Problema estrutural e complexo
Será necessário que tenhamos mais uma catástrofe para que seja rompida a resistência acerca da discussão de assuntos que desagradam interesses corporativos ou econômicos?
Não podemos mais ficar esperando que os fatos venham à tona como se fossem infalíveis sem qualquer atuação pró-ativa. Urge que as medidas sejam tomadas levando-se em conta, preponderantemente, senão exclusivamente, o interesse da sociedade, e não de grupos, ainda que poderosos, do ponto de vista econômico ou político.
É preciso que o Ministério Público brasileiro, os defensores públicos, os órgãos de defesa do consumidor e outros cumpram o seu papel, situando-se acima dos interesses econômicos e corporativos e defendam a sociedade brasileira, trabalhadora e usuária do sistema de tráfego aéreo, levando em conta as dificuldades para uma mudança estrutural que permita a efetiva concretização do interesse público.
Neste sentido, não há como deixar de se envolver também o Poder Judiciário brasileiro nessa questão, de maneira a transformar em realidade os direitos fundamentais dos trabalhadores e dos usuários do transporte aéreo.
Com efeito, a solução da crise aérea, por ser de cunho estrutural, complexa e que engendra interesses conflitantes, deverá passar pelos atores sociais incumbidos da defesa dos interesses difusos, ou seja, direitos de todos, mas que ninguém detém apenas para si.
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Procurador do Trabalho lotado no Núcleo de Meio Ambiente do Trabalho da Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região, especialista em Direito do Trabalho pela PUC/SP, em Direito Ambiental pela Escola de Direito Constitucional Ambiental/SP e em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP/SP e mestrando em Direito do Trabalho pela PUC/SP