O episódio da discussão entre dois ministros do Supremo Tribunal Federal tem sido interpretado pela imprensa como manifestação de uma crise que não se conseguia mais esconder. Como decorrência dessa convicção da opinião pública sobre a instabilidade no mais alto dos tribunais, vimos seus ministros pressionados a gastar tempo das sessões com manifestos políticos de elogio à gestão do presidente da casa: uma conduta teatralizada e, assim, incomum à atual composição do Supremo. Não é de se colocar por escrito a opinião direta de a quem interessaria, neste momento, estender ao STF a imagem de crise, mas podemos apontar razões pelas quais a discussão aberta entre dois ministros, com uma ou outra farpa de subjetividade, não é menos que a demonstração da liberdade que outros poderes da República não conquistaram.
A primeira pergunta que se há de fazer é por que o STF, de uns anos para cá, adquiriu tamanha visibilidade. Medidas internas de transparência, como as transmissões da TV Justiça ou as notícias por suporte e linguagem acessíveis do site são periféricas em relação ao principal. E o principal é que o Supremo adquiriu mais poder. Expomos o que levou a essa aquisição de poder apenas para dizer que, embora se possa discordar dessas veredas, elas são legítimas.
A função eminente, mas não única, do Supremo como Corte Constitucional traz a conseqüência direta de que, quanto mais detalhada for a Constituição, mais temas serão de sua competência. Nossos constituintes de 1988, então, ao descerem às minúcias os artigos constitucionais, obrigaram o Supremo a manifestar-se constantemente sobre quase todas as normas do país; a isso soma-se um movimento quase mundial da doutrina jurídica, que espalha a fé entre os cientistas em que, grosso modo, é a Constituição é que legitima o Direito como um todo. No caso do Direito penal, por exemplo, muitos dos advogados que recorrem ao Supremo esquecem-se de que nossa Constituição tem um conteúdo altamente criminalizador; um processo que ampliou o chamado controle concentrado de constitucionalidade também trouxe ao STF maior influência, a exemplo das chamadas ADPFs (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) e súmulas vinculantes.
Caminho perigoso
E a última razão vem de Montesquieu: um poder que de fato funciona ocupará os claros deixados pelos demais, notadamente por conta da inércia e a endogenia do Congresso, afogado em seus próprios problemas. Pela ótica do Supremo, cremos, uma aquisição de território involuntária, porém inevitável.
Os efeitos reversos são poucos: quem tem competência mais ampla adquire maior carga de trabalho, e seria ilógico prever que onze ministros, reunidos (e presentes) em sessão ao menos três vezes por semana, dispostos quase ao redor de uma tábula que os põe frente a frente durante horas, não se enfadassem com seus opositores intelectuais.
O elemento conclusivo que nos cabe apontar é que essa concentração de poder – que, conquanto não recomendável, é legítima – tem sido compensada pela independência de cada um de seus onze membros. Se a opinião pública compelir o STF a ocultar suas cizânias, e daí a dissipar nos bastidores as suas diferenças, haverá caminho aberto para a ditadura do Judiciário.
******
Respectivamente, professor doutor de Direito Penal da USP-FDRP e advogado criminalista em São Paulo