Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Da arte de forçar a barra

‘Esquentar’ uma matéria, no jargão jornalístico, é forçar a barra, apresentando o fato numa dimensão superior à sua importância. É recurso condenável, mas muito usado para atrair mais audiência ou alavancar tiragens de jornais e revistas.

Na cobertura das declarações do ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, sobre os conselhos de comunicação e a regulamentação da comunicação eletrônica, deu para perceber, com clareza meridiana, a forçação de barra para satanizar os conselhos, tirar o foco da regulamentação das concessões do rádio e da TV e inventar o risco de que por trás disso estaria a intenção de controlar a mídia e censurar os veículos de comunicação.

Gratuita ou propositalmente, declarações do ministro foram sacadas de seu contexto e transformadas em ameaças à liberdade de imprensa. Lembro bem do susto que tomei quando li na Folha de S.Paulo que Franklin Martins havia ‘ameaçado’ aprovar na marra a reforma nos critérios de regulamentação da mídia eletrônica. O efeito cascata foi imediato. Até vetustas e respeitáveis instituições, como a OAB, caíram na armadilha, e seu presidente, Ophir Cavalcanti, foi a público dizer que a Ordem é contra qualquer tipo de conselho porque não admite restrições à liberdade de imprensa.

Esqueceram de dizer a ele que os conselhos – como o Conselhão, esse que foi previsto na Constituição de 1988 e que funcionou até 2006 no Senado – servem tão-somente para analisar as programações, apontar excessos – tudo a posteriori – e contribuir para a qualificação da informação e/ou do entretenimento. Tem função meramente consultiva. Nada tem a ver com censura, tanto que nunca a OAB fez uma crítica a ele. Como é fácil traduzir a expressão ‘monitorar’ como ‘censurar’, o que se fez foi gerar na opinião pública a sensação de que a censura estaria de volta. Propositalmente, o verbo ‘monitorar’ – que significa ‘acompanhar com atenção’ o que a gente ouve e assiste (como faz ou fazia o Conselhão do Senado em relação ao que ia ao ar nas TVs e rádios) – foi traduzido como ‘censurar’. E instalou-se o medo.

Ninguém quer abrir mão dos privilégios

Outro dia, ao entrevistar um representante da Abert, Rodolfo Machado Moura e Murilo Ramos, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e especialista em política de comunicações, ouvi a avaliação de que a Folha, o Estadão e o Globo estavam ‘esquentando’ o assunto. E que a polêmica não resistia a uma análise isenta. Ainda assim continuei com alguma desconfiança. Dias depois, ao fechar uma matéria sobre o assunto dispus-me a assistir, na íntegra, às principais intervenções do ministro Franklin Martins a respeito. Gastei uma tarde inteira assistindo a tudo, mas valeu a pena. Não vi nelas qualquer sinal de que o governo pretenda censurar ou controlar os meios de comunicação, antes pelo contrário. (É bom deixar claro que o presidente Lula, como de resto todos os detentores do poder, em maior ou menor nível, não gostam mesmo da imprensa e bem que gostariam de nos colocar uma mordaça quando nos tornamos incômodos demais. Dentro do atual governo há, sim, quem tenha uma certa inveja de Hugo Chávez.)

Colecionei algumas matérias da Folha de S.Paulo durante o período. Declarações descontextualizadas provocam a sensação de que vem aí uma tempestade de cocô. Ou que, no mínimo, raios e trovões desabarão sobre as nossas cabeças. Isso se o céu inteiro não vier abaixo, num apocalipse aterrador de choro e ranger de dentes. Tudo trovoada de laboratório, vê-se agora.

Durante a campanha eleitoral, bati simultaneamente em Dilma e Serra, a cada bobagem que faziam ou diziam. Em alguns momentos sobrou para Lula e Fernando Henrique. E andei de beiço torcido até para o Franklin, porque, sem tempo para ler de forma contextualizada as aspas que saíam em destaque, embarquei na canoa furada de que por trás do que dizia havia o desejo escondido de controlar a mídia. Mas, ao assistir na íntegra às palestras que deu, às entrevistas que concedeu, ou seja, quando vi tudo por inteiro, e não aos pedaços, percebi que estava comprando gato por lebre. E que os interesses por trás da manipulação editorial revelavam, isto sim, o receio de se colocar alguma ordem na pocilga em que se transformou o sistema de concessões. E algum freio na nefanda prática da propriedade cruzada, que permite a um mesmo grupo econômico ser simultaneamente dono de emissoras de rádio e TV, de jornais, revistas e portais da internet.

Na verdade, o que existe mesmo por trás de tudo é que ninguém quer abrir mão dos privilégios obtidos durante os anos em que podiam fazer e acontecer, sem freio algum. Para manter esses privilégios vale tudo. Inclusive esquentar declarações ou exibi-las fora de contexto, como ocorreu e tudo indica que vai continuar a ocorrer.

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Jornalista e professor universitário