Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Da covardia ninguém falou

A imprensa – que tem feito um bom trabalho na cobertura do caso do espancamento da doméstica Sirlei Dias de Carvalho, na Barra da Tijuca, Rio – está esquecendo um significativo detalhe em suas matérias: a escolha das vítimas.

Ao dizer que os agressores confundiram a doméstica Sirlei com uma prostituta, fica parecendo que eles são moralistas e agem movidos apenas por preconceito, atingindo mulheres que – na opinião deles – merecem maus-tratos por sua escolha de vida.

Jovens de classe média que cometem crimes sempre motivam a imprensa. E não foi diferente desta vez. O que começou timidamente durante a semana teve seu auge no domingo (1/7), com revistas semanais e grandes jornais procurando entender a atitude dos agressores. Antropólogos, psicólogos, psicanalistas foram ouvidos para tentar mostrar aos leitores o que está acontecendo com a sociedade e com a criação dos jovens em condomínios fechados, escolas exclusivas e uma educação diferenciada.

Teste dos limites

Preocupada com os agressores, a imprensa pouco mostrou da vítima – ou vítimas, como se viu depois. O que ficamos sabendo sobre a doméstica agredida? A melhor matéria está na Veja (edição nº 2015, de 4/7/2007):

‘Sirlei foi atacada quando saiu da residência em que trabalha para ir a um posto de saúde perto de sua casa, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Madrugou no ponto de ônibus porque teria de encarar três conduções e um percurso total de 63 quilômetros até o posto. Depois da consulta, faria um trabalho extra em seu dia de folga: uma faxina que lhe renderia 70 reais e reforçaria o salário do mês, de 550 reais’.

Só este trecho renderia duas boas matérias sobre a situação dos pobres que precisam usar o dia de folga para fazer trabalho extra (e ganhar um dinheiro a mais), ou o fato de trabalhar num bairro e ter que pegar três ônibus e percorrer 63 quilômetros para receber atendimento médico.

Mas a mídia prefere se concentrar nos problemas da classe média e dos jovens que, apesar de conviver com domésticas em casa, não ligam para esse outro mundo. Como diz o educador Paulo Carrano, ‘os ricos passam a vida inteira num condomínio fechado e, no momento em que saem, estranham o diferente, são incapazes de reconhecer as diferenças’ (O Estado de S.Paulo, 1/07/2007).

Já que os pais não encontram explicação para o comportamento dos filhos, a mídia tenta esclarecer, aceitando análises sofisticadas:

‘A auto-afirmação é uma das características apontadas por especialistas como um dos motivos para vandalismos. Esses jovens estão construindo a sua identidade a partir do teste dos limites. Em alguns casos, são coisas pequenas, como roubo de cones. Uma minoria exagera.’

As afirmações são do sociólogo Julio Jacobo à Folha de S.Paulo (1/7/2007).

Contra a impunidade

Os pais de classe média vão entender, com mais facilidade, o conselho que veio do pedreiro Renato Moreira Carvalho – que, felizmente, foi entrevistado pelo Estado de S.Paulo (1/7/2007):

‘Se tivesse de falar algo, diria para os pais para que deixassem os filhos assumir os próprios erros. Não acobertem. Se não deram responsabilidade a eles quando eram crianças, dêem agora. Façam deles homens. Que eles possam tiram desse episódio alguma lição. E que não seja da impunidade’.

Mal ou bem, a mídia fez seu papel: falou da situação de Sirlei, das ofensas sofridas pelas prostitutas, procurou produzir uma análise sociológica e antropológica dos fatos, mostrou os rumos do processo policial. Mas esqueceu apenas de um aspecto: o fato de as vítimas serem mulheres indefesas diante de homens covardes.

Contra maridos e companheiros que são violentos as mulheres já têm defesa – Delegacias da Mulher, Lei Maria da Penha. Mas o que fazer quando são agredidas apenas porque estão no lugar errado na hora errada? O que fazer quando o fato de ser mulher faz delas o alvo perfeito?

Para que esse tipo de violência acabe, vai ser preciso uma grande mudança na mentalidade da sociedade, especialmente de jovens que acham prisão um exagero, como mostrou a Folha de S.Paulo (1/7). Depois de afirmar que a exposição na mídia já é punição suficiente, um dos entrevistados afirma: ‘Se o caso não fosse divulgado, o problema seria resolvido como dinheiro, que é o que sempre acontece’.

Parece que, pelo menos desse ponto de vista, a imprensa cumpre um bom papel quando tem essa preocupação com crime de classe média: diminui a impunidade e o tradicional ‘tudo se resolve com dinheiro’.

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Jornalista