Saturday, 07 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1304

Da maconha à constitucionalidade do exame de Ordem

Especular sobre o posicionamento do Supremo Tribunal Federal não faz muito minha preferência, porque é muito fácil criticar quem está constantemente numa fria. Dito de outro modo, fazer média com o auditório, à custa de quem deve dar a cara a tapa cotidianamente para firmar posição sobre assuntos religiosos e morais – muito antes de jurídicos – não é meu estilo predileto. Porém desta vez não resisti, porque de algum modo também sobrevivo de público e, daí, do populismo.

Primeiro, porque li na imprensa que a Suprema Corte disse que a tal da marcha da maconha é constitucional. Quando vejo uma conclusão como essa – quaisquer que sejam seus fundamentos, porque estes me interessam muito pouco – penso que todo o conceito de sociedade civil que aprendi na faculdade foi desvirtuado escancaradamente, nas barbas do povo. Ou seja, o que afirma o STF, creio, é que a sociedade civil pode organizar-se para expor sua opinião aos legisladores, externalizando sua insatisfação diante um dispositivo incriminador, sobre o qual nosso ordenamento – sem trocadilho – está baseado.

Como se a população tivesse direito a pressionar aqueles a quem elegeu, enfrentando o poder comunicativo/impositivo do Direito Penal, que determina claramente que ninguém, em nenhuma circunstância, pode fazer propaganda de um crime, ainda para pedir que aquele crime, pelas vias estritamente legais, não mais seja crime.

Abuso de poder

Demais complexo para minha cabeça, muito aberta aos novos tempos apesar de eu jamais ter fumado maconha, porque é contra a lei. Pegue a moda, e nossos ministros supremos terão de autorizar marchas contra a corrupção escancarada nos três poderes, contra a impunidade dos multiplicadores de patrimônio ou contra a falta de coragem, daqueles que deveriam ser constitucionalmente independentes, em mandar investigar a roubalheira, apenas porque ela (a roubalheira) foi devidamente tributada.

Mas o pior é ouvir dizer que nosso Guardião da Carta Magna estará na iminência de considerar constitucional o Exame da OAB. Prefiro entender, a princípio, que os atuais ministros, do alto de seu pedestal, não compreendem a realidade do País, portanto, se assim decidirem, o farão por miopia, não por má-fé.

Talvez a formação germânica de alguns deles facilite a analogia com o sistema alemão, que autoriza que o bacharel preste apenas duas vezes exames de ordem e, se reprovado, tenha de se resignar em ter feito a faculdade de direito apenas por diletantismo, pois não exercerá na presente encarnação a profissão a ela vinculada.

Na cara daqueles que quiserem construir essa hipócrita comparação eurocêntrica, teremos de jogar alguns princípios constitucionais patentes, a exemplo da autodeterminação dos povos: se nosso caminho é engrossar as filas dos diplomados, em nome de estatísticas maquiadas de igualdade social, quem poderá nos impedir? Nossa identidade cultural deve ser construída no próprio Zeitgeist (gostaram?), no espírito dos tempos. Sem colonialismo cultural.

Isso sem falar na evidente constrição ao princípio do livre exercício profissional que o Exame de Ordem representa. Qualquer cidadão deve, em querendo, exercer o direito de ascender à profissão de advogado – ou de médico, ou de engenheiro – sem a intervenção desses verdadeiros poderes paralelos que os tais órgãos de classe compõem. Para os que alegarem que, por outro lado, é imprescindível garantir a qualificação do profissional pelo crivo de um corpo especializado, devo lembrar que as faculdades de Direito já nascem sob o rigorosíssimo controle do MEC, e este, se ignora constantemente o parecer meramente opinativo da OAB para que não se autorizem tantos cursos, o faz por confiança pura na qualidade das instituições visitadas.

Para confirmá-lo, basta ver o funil que são os chamados processos seletivos dessas instituições, com análise curricular aprofundada e testes ferrenhos de capacidade de construção de texto daquele candidato que, no futuro, trabalhará exclusivamente com a comunicação em defesa da liberdade dos concidadãos.

Se, aqui e ali, morremos de curiosidade por ter acesso à redação vestibular composta por alguns ingressantes dessas instituições, é apenas por conseqüência do trabalho pernicioso da imprensa (sempre, a imprensa!), a qual, em lugar de demonstrar as verdades, planta na opinião pública o preconceito contra a aptidão intelectual do nosso povo brasileiro, como se este fosse incapaz de produzir um menino-prodígio que se expressa como adulto aos sete anos de idade, ou como se um operário não pudesse ter seu literal analfabetismo consertado durante os anos de graduação, por esforço pessoal incrementado pelo sistema pedagógico complexo da faculdade que o admitira. O número elevadíssimo de reprovados nesses processos seletivos privados autoriza afirmar que a exigência de um exame, posterior, de Ordem é abuso de poder e vedação, repito, ao livre exercício profissional.

Ironia?

Por último, para que não me acusem de legalista, é necessário sensibilizar-se com a realidade: o que resta para um bacharel em Direito, neste país, se reiteradamente reprovado no exame da OAB? Observo três alternativas: primeiro, conformar-se com mudar de profissão, não sem antes processar a IES por tê-lo enganado, ao mantê-lo por cinco anos em um curso comprovadamente incapaz de aprovar sequer um aluno no exame de capacitação mínimo para o exercício da advocacia. Mas esse pedido, claro, em termos de Direito do Consumidor seria absolutamente descabido, porque o crime não está na propaganda enganosa, mas no exame de Ordem em si, já o dissemos.

Segunda alternativa: ter de matricular-se em um desses cursos preparatórios e pagá-lo durante anos, fomentando um mercado também criminoso de quem ganha dinheiro suplementando o ensino da faculdade, só porque conta com a atenção do aluno, que agora sabe que tem de assistir à aula – afinal, pela primeira vez na vida, fora reprovado em um exame: o da OAB (e o dano moral que essa reprovação produz? Recuso-me a adentrar a esse assunto).

Última alternativa: diplomado, porém reprovado e desempregado, o bacharel é compelido a aceitar o convite da instituição que o formou, para que curse uma pós-graduação (ali mesmo) e então ingresse em seu quadro docente. Porque, apesar de não poder exercer a advocacia, pode sim ocupar um cargo de professor na casa que sempre o acolhe. Não só isso é frustrante, como sem dúvida ofende outro princípio constitucional, o da dignidade da pessoa humana: formado para a advocacia, o bacharel descende à condição de professor universitário.

Se o STF confirmar a constitucionalidade do Exame de Ordem, proferirá decisão tão absurda quanto a liberação da marcha da maconha; demonstrará outra vez que não sabe aquilatar os limites das liberdades, bem como ainda seguir ao sabor da perniciosa influência da opinião pública; e, o que para mim pessoalmente é mais frustrante, colocar-se-á na arrogante posição de ter de, provocado a tanto, intervir para garantir a organização da nossa sociedade, como se o Legislativo não estivesse motivado a tanto.

Facilitar um pouquinho o exame da OAB enquanto se debate verdadeira causa do alto número de reprovações apenas ironicamente seria solução ao problema.

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[Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de Direito Penal da Universidade de São Paulo, autor de Fundamentos do Direito Penal Brasileiro (Editora Atlas) e da novela A Hora do Carvoeiro]