‘Sem referência à epistemologia, uma teoria do conhecimento seria uma meditação sobre o vazio; e sem relação à história das ciências, uma epistemologia seria uma réplica perfeitamente supérflua da ciência sobre a qual pretenderia discorrer’
Hilton Japiassu
Segundo Henri Bérgson, o trabalho do filosofo consiste em inverter a direção natural do trabalho do pensamento. Descartada a pretensão e como acredito que haja uma filosofia da medicina, apenas tentarei fazer algo análogo. Comecemos então pelo fim. Em todas as versões aceitáveis do que essencialmente caracteriza a atividade médica encontramos pelo menos um objetivo principal razoavelmente compartilhado: cuidar da saúde das pessoas.
Temos observado um padrão de comportamento com assuntos científicos polêmicos na mídia que vêm se caracterizando tanto pela fulanização do problema, como pela desqualificação — que por conveniências não explicitadas — seleciona ou simplesmente deleta argumentos alheios. Toda critica consistente deveria ser enaltecida, pelo menos este deveria ser o papel da oposição na política, das teorias rivais nas ciências. Mas não é que ela é quase sempre mal recebida? Considerada uma ofensa. Nos meios mais sectários, um golpe. A tradição da polêmica, infelizmente empobrecida no país, teria o mérito de resgatar um debate saudável. Aonde todas as partes sairiam mais esclarecidas, mesmo que com as divergências acirradas. Aprofundar o conhecimento de matérias sensíveis para torná-las mais disponíveis para o grande público. Este é um dos papéis da imprensa.
Comecemos de novo então, desta vez pela experiência. O que é a experiência do ponto de vista científico? Não são só dados laboratoriais reproduzíveis em ambientes controlados como pode pensar o senso comum. Segundo o epistemólogo Gaston Bachelard experimentar consiste em fazer as perguntas certas. Ele destaca que a história das ciências não pode ser meramente empírica, mas, antes de tudo, o progresso das ligações racionais do saber. Neste sentido, a epistemologia histórica estruturou-se como uma reação ao positivismo. Graças a esta estratégia pode-se resgatar procedimentos que foram precocemente descartados pela ciência e resignificá-los. Demonstrando que a história pode estar muito distante de uma palavra final. Foi, por exemplo, o típico caso da acupuntura. Do descarte precoce à sua redenção temos uma história interessante relatada pelo epistemólogo austríaco Paul Feyrabend. Conta este autor que quando Mao T. Tung chegou ao poder quis saber quais alternativas teria aquilo que classificou como ‘medicina ocidental burguesa’. Foi informado que nas montanhas, muito além de Beijing, resistiam praticantes de uma multimilenar forma de medicina tradicional chinesa que envolvia a associação de procedimentos como moxabustão, acupuntura e fitoterápicos. Disposto, o ditador chinês chamou estes supostamente anacrônicos representantes que foram provando seu valor quando instalados em ambiente de estimulo a pesquisa na Universidade de Pequim. Décadas depois haviam reconstituído a tradição, às vezes até mesmo sob o risco de descaracterizá-la, e continuaram sendo financiados para aplicá-la e pesquisá-la em ambiente acadêmico. O processo de validação cientifica progrediu e foi encontrando cada vez mais adeptos no mundo, especialmente a partir do boom ocorrido na América do Norte nos anos setenta. Até que, muito recentemente, a acupuntura (apenas um braço da medicina tradicional chinesa) sedimentou-se institucionalmente inclusive nos meios médicos mais tradicionais, durante muito tempo declaradamente hostis a esta prática.
Assim há que se criticar pesadamente a falsa noção, ainda fecunda dentro das ciências duras, de que haveria um ‘experimento crucial’ que determinaria a completa aceitação ou repúdio de uma disciplina. Mesmo porque, segundo Imre Lakatos, experiências cruciais só são vistas como cruciais muito tempo adiante.
História da medicina
Quando a análise enfoca a história da medicina, raros são os historiadores que, lançando um olhar retrospectivo sobre esta ciência, discordam do aforismo de Claude Bernard de que uma anterioridade cronológica é uma inferioridade lógica. Nem sempre, como nos explicou o filósofo Roberto Machado. Sabemos que a lógica em si mesma é insuficiente para dar conta de exigências e possibilidades de validade que, conforme nos mostrou Kuhn, ampara-se em valores e necessidades de uma dada cultura, em determinado momento histórico. Não há porque se espantar que a ciência não seja neutra e nutra determinações políticas e econômicas em suas motivações e também em sua leniência. Ou seja, impõe-se reconhecer a não universalidade e a não univocacidade dos padrões normativos de ciência alguma. É verdade que há irritante abuso do termo ‘paradigma’. É tratado como se fosse uma palavra mágica, salvacionista e auto-referente. Mas ela nem é mesmo uma palavra, talvez seja um grande tema, já que comporta, segundo Lakatos, 27 diferentes significados. Mas o que é que se pode fazer? Talvez este seja um preço a se pagar enquanto atravessamos áreas sem fronteiras delimitadas.
Para Bachelard, identificar e compreender uma ciência é mapear impasses metodológicos e teórico-práticos que a originaram como procedimento racional. Esta condução da problemática pode não parecer, mas foi conceitualmente bastante inovadora. Inscreveu-se como uma reação importante contra a confiança excessiva que a sociedade industrial depositou nas ciências experimentais e em suas metodologias, características do positivismo clássico e que deu origem a uma estranha versão de fundamentalismo, desta feita o cientificista. Confiança que ganhou estatuto axiomático: tratava-se de verdades unívocas e irrefutáveis. As ciências experimentais pretendiam, grosso modo conseguiram, construir robustos ‘superparadigmas’. O positivismo, como todas as correntes de pensamento, teve seu momento e valor, entretanto seu unideterminismo causalista e sua pretensão hegemônica, mesmo maquiada, não podem mais ser parâmetros para construção dos genuínos diálogos científicos. E é pela persistência anacrônica deste perfil que uma abertura intelectual desejável no mainframe científico ainda está bem longe de operacionalizada.
Por isso a epistemologia proposta por Bachelard critica o positivismo lógico e seu método de construção da ciência:
‘Ver para crer, este é o ideal desta estranha pedagogia. Pouco importa se o pensamento for, por conseqüência, do fenômeno mal visto para a experiência mal feita…em vez de ir ao programa racional de pesquisas para o isolamento e a definição experimental do fato científico, sempre artificial, delicado e escondido’
Alcances e limites da ciência
Esta versão filosófica dos fatos tem enorme valor quando analisamos a vida prática da sociedade contemporânea. Pois bem, a epistemologia histórica sendo, por excelência, uma análise crítica da ciência que alcança também suas dimensões histórico-social e lógica, examinava menos o ‘como’ da atividade científica e muito mais seu ‘por quê?’ Bachelard usa o racionalismo aplicado na busca destas respostas, fazendo perguntas bastante incomodas e por isto mesmo muito relevantes: o que direciona a ciência em suas trajetórias? Quais seus possíveis alcances e limites? Como se insere na relação e nas ligações com outros campos de conhecimento? Atenderá ela as necessidades ou mesmo o desejo dos sujeitos da sociedade? Temos consciência de quanto esta relativização irrita os defensores do pragmatismo imediatista. Postados com porte olímpico, como se fosse um torneio, estão famintos por conclusões definitivas, que simplesmente inexistem. A ciência deveria ser o próprio espírito desta insurgência contra convicções estáticas.
Esta reflexão desdobra-se em outras inquietações: se uma sociedade pode produzir milhões de papers ao ano haverá um leitor disponível para cada um deles? Pode-se dizer que a atualização científica no caso da atividade médica reduz-se à tarefa intelectual? E quanto ao valor do conhecimento prático, onde ele fica? A sociedade bem o sabe, por isso procura médicos com experiência. Não, senhores, a lente da experiência clínica ainda é instrumento insubstituível de autoformação, assim como, ou tanto quanto, a densidade existencial proporcionada pelo trato com semelhantes.
Bachelard sonhava com uma filosofia suficiente para que a ciência pudesse construir sua própria crítica. A proposta seria resistir à idéia de que o conhecimento sensível pudesse ser a fonte imanente de descobertas. Temos que apontar sempre para o reconhecimento de sua insuficiência. Deve-se desconfiar de uma clareza conceitual intrínseca como quer uma razão monológica, que afirma que tudo domina. Que desconhece o ignorado e desconsidera o não explicável. Por isto vale muito investir no instinto formativo que busque uma nova pedagogia da ciência – contra o velho espírito conservador – comprometida em obter provas da clareza de sua indução.
Pois é esta critica, ou autocrítica para ser mais rigoroso, que falta a uma aplicação universal da evocação de uma ciência acabada para as artes médicas. Sem dúvida que quanto mais padronizado, testado, vale dizer, quanto mais evidente for um beneficio, considerando a incontornável equação epidemiológica risco-proteção, tanto melhor e mais desejável será o procedimento eleito para um enfermo. E a ciência médica pode e deve buscar este padrão ‘ouro’ de excelência científica em suas pesquisas. Ninguém inteligente duvida disto. O que nem ela, nem seus protagonistas podem evitar, — e ai sim seria o momento de duvidar se isto acontece — é subsumir que porque ela se pauta em achados epidemiológicos de relevância estatística ela pode abstrair de seus horizontes outras racionalidades médicas que não puderam ter a mesma constância ou regularidade estatística nos desenhos tradicionais de pesquisa clínica.
Independência e budget
Não pode haver equivalência moral em comparar as condições de desenvolvimento das racionalidades médicas integrativas sem considerar a disponibilidade efetiva proporcional de recursos para pesquisas e publicações. Ou não conta o fabuloso faturamento bruto de U$ 500 bilhões de dólares (segundo Peter Rost, ex-executivo da Pfizer) da indústria farmacêutica no ano passado? Como afirmou o historiador de medicina Henry Sigerist em meados do século XX, somente a independência e um budget para investigações cientificas provido pelo Estado podem tornar as pesquisas com fármacos e investigação de procedimentos clínicos mais imparciais, seguros e, sobretudo, confiáveis. Isto é de notório interesse público. Também é impossível desconsiderar que outros procedimentos terapêuticos agem em aspectos distintos do sujeito. Muitos deles para além da moléstia propriamente dita. Ou a psicanálise, a massagem, a meditação, os exercícios, o padrão alimentar, os procedimentos que não envolvam fármacos, sem contar o próprio ócio, não desempenham papéis relevantes na vida humana?
Decerto que interferem em outros critérios de sucesso, e, portanto, produzem outras evidências. Se a ciência médica vem encontrando respostas importantes na pesquisa genética e na biologia molecular, mais importante ainda se torna voltar-se ao sujeito e compreender suas idiossincrasias e suscetibilidades que o caracterizam na enfermidade e na saúde. É assim que mais relevante ainda torna-se responder a inquietante dúvida de por que é que o mesmo agente causal não determina a mesma patologia em todos os expostos, ou por que reagimos diferentemente aos mesmos fármacos.
Não basta dar aulas de humanidades aos médicos, ainda que isto já fosse, por si só, um início bastante auspicioso. É necessário repensar os critérios de formação de forma mais aguda e só para usar uma palavra pudicamente evitada, radical. É necessário colocar maior peso no generalista e na atenção primária à saúde, pois é esta que pode tornar o Cuidado um bem mais accessível. São estas correntes que juntas podem, efetivamente, prevenir enfermidades e promover a saúde. É preciso ensinar as novas gerações de médicos tudo de mais moderno disponível, mas dando o devido contrapeso à sofisticação tecnológica. Por exemplo, enfatizar que imagens e propedêutica armada são muito importantes, mas infelizmente não bastam. Voltar a desenvolver-lhes os cinco sentidos não seria má idéia. A descentralização que sugere migração da política hospitalocêntrica para práticas mais ambulatoriais é recente e benéfica herança desta visão mais arejada da realidade. É necessário que discursos sejam contextualizados, que o sujeito atrás das tabelas e protocolos experimentais seja recuperado e revalorizado.
Finalizo então com novo início. O verdadeiramente lesivo à sociedade seria se só um tipo de pensamento médico prevalecesse. Há espaço para todas as medicinas – integrativas ou não — e para toda boa atuação médica. Todos têm interesse neste esclarecimento. Isto não é luta qualquer e não há protagonista principal aqui. Assim como as intuições e os conceitos são pares indissociáveis, experiência e informação são tandens. Andam sempre juntas. Aqui não há perigo em universalizar, pois todas as atividades humanas dependem desta correlação de forças. Sofia (conhecimento teórico) e phronesis (conhecimento prático) são desejavelmente simbióticas. Sabemos que elas só fazem sentido se podem permanecer interagindo. Aliás, só por isso existimos como seres aptos a interpretar o mundo.
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Pesquisador associado do Departamento de Patologia da FMUSP e pesquisador associado do IMS-UERJ, no grupo ‘Racionalidades Médicas’. Formado em Medicina pela PUC-SP, é mestre em Medicina Preventiva e doutor em Ciências, pela USP É docente e consultor pedagógico do Instituto de Saúde Integral (Brasilia-DF) e autor de seis livros na área médica.