Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Davi, Golias e a brincadeira que não educou

A história de Davi contra Golias expressaria bastante bem a luta travada entre Silvio Santos, apoiado por sua platéia, e a menina Maísa Silva, não fosse a realidade bastante diversa da ficção bíblica e Davi sucumbisse instantaneamente diante de seu maquiavélico oponente (ver, neste Observatório, ‘A menina-prodígio e a caixa registradora‘).

Dentro da paupérrima fórmula de chamar desenhos, conversar com o seu Silvio e comandar brincadeiras pelo telefone, Maísa captura nossa atenção. Trata-se de um pequeno prodígio – ou, para usar termos de psicologia comportamental (dos quais não gosto), é uma criança com altas habilidades, muito acima da média etária. Sua desenvoltura à frente das câmeras é espantosa: canta, dança, brinca, lê e reage prontamente a situações complexas. Fecha um diálogo poderoso com o público infantil e adulto: com o infantil, por não se tratar de uma ninfeta falsamente ingênua, com chuquinhas no cabelo e belas pernas à mostra, mas sim, de uma criança na sua espontaneidade cuja linguagem corporal convida a audiência a partilhar do mundo encantado da televisão.

Com a audiência adulta (público-alvo do quadro ‘Pergunte pra Maísa’, que fazia com Silvio Santos), a situação é mais complicada. A princípio, a menina-prodígio multiplica o prazer que todos sentimos ao provocar uma criança a pensar, com sua saborosa lógica e seu impagável frescor. Se feita com respeito às curiosidades próprias a cada faixa etária, essa provocação é um instrumento para instigar a inteligência da criança e dar-lhe um lugar social pensante, que lhe beneficia, em relações com adultos que costumam marcar-se por exigências de apropriação dos conceitos pré-cozidos pela cultura, sem transformá-los. Assim são, por exemplo, os conceitos cobrados nas provas de decoreba ou nos abomináveis testes de quociente intelectual (Q.I.).

Humilhação em rede nacional

O suíço Jean Piaget revolucionou a psicologia experimental substituindo a quantificação da inteligência pela avaliação qualitativa, por meio do método clínico: quando Piaget simplesmente perguntava às crianças: ‘Por que a Lua não cai?’, ‘Por que aquela montanha está ali?’ etc., conduzia-as a elaborar hipóteses próprias, cuja adequação à realidade objetiva dava-se gradativamente, no confronto das contradições presentes nestas hipóteses com a mencionada realidade. Tanto Piaget quanto Vigotski, os pesos-pesados da psicologia da educação, defendem a importância da brincadeira e do jogo no processo de desenvolvimento dessas hipóteses, entre outras realizações da inteligência infantil.

Mas a situação envolvendo Silvio Santos e Maísa não foi brincadeira nem incentivou o desenvolvimento da menina. Pautou-se pela completa falta de respeito para com ela, por duas razões principais: 1) no caso da situação em que foi trancada na mala, Maísa foi objeto de um embuste, cujas regras não podia conhecer e às quais, portanto, não podia responder. Assim sendo, Silvio Santos e sua cruel platéia posicionavam-se com arrogante superioridade, não lhe proporcionado igualdade de condições, tal como ocorreria no jogo entre crianças de nível semelhante de desenvolvimento; 2) a menina, compreensivelmente, reagiu chorando, o que a tornou objeto do escárnio de Silvio e sua platéia.

As consequências podem ser catastróficas. Yves De La Taille, no livro Vergonha: a ferida moral (entre outros), mostrou o desastroso impacto que a humilhação pública exerce no desenvolvimento infantil. Contudo, De La Taille tratou principalmente da humilhação exercida em contexto microssocial. Que dizer da humilhação infligida por Silvio Santos em rede nacional?

Distorções do imaginário midiático

A criança foi humilhada porque o embuste – tal como falsamente declarava Silvio – levou-a a acreditar que deveria portar-se de modo ‘adulto’, que não podia assustar-se. Mas o objetivo de Silvio era, justamente, assustá-la. A menina não percebeu isso. Sob o seu ponto de vista, estava aquém das expectativas de um homem que não era meramente seu patrão, mas sim, um adulto merecedor de sua confiança. As supostas expectativas deste adulto a rebaixaram frente a si própria. Aos sete anos de vida, compreender o clássico dito de Don Corleone – ‘It´s not personal, only business’ – é praticamente impossível. Ser explorada por adultos interesseiros é um reconhecido fator de estagnação do desenvolvimento, uma das razões pelas quais uma criança-prodígio se obscurece ao tornar-se adulta. Isso acontecerá com Maísa? Continuará a menina a servir como máquina caça-níqueis ativada por controle-remoto?

Nossos Conselhos Regional e Federal de Psicologia estão lutando em defesa da infância e precisam participar da apuração e punição dos responsáveis. Não creio que toda a audiência do canal tenha se comprazido com o flagelo da menina (em triste situação estaríamos, se assim fosse!), mas tampouco podemos subestimar o efeito da mídia em normalizar o abominável, explorando as regiões mais sensíveis da afetividade humana. E essas regiões incluem os afetos que dirigimos às crianças. A crescente presença da infância na mídia (veja-se, por exemplo, o caso Isabella) mostra que, dentre tantos objetos possíveis, a indignação contra calamidades particulares que afligem crianças particulares ainda é unânime. As distorções do imaginário midiático relativas à infância, contudo, mostram uma degradante incorporação da criança à comunicação de massas e mostram emissoras de televisão completamente desinteressadas em se auto-regular respeitando as leis de um país democrático. Nós é que precisamos forçá-las a isso.

***

Em tempo, sugiro os links:

http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/noticias/noticia_091223_001.html

Campanha: Publicidade Infantil Não: http://www.publicidadeinfantilnao.org.br

http://www.eticanatv.com.br.

LA TAILLE, Yves de. O sentimento de vergonha e suas relações com a moralidade. Psicol. Reflex. Crit. [online]. 2002, vol.15, n.1 [cited 2010-01-08], pp. 13-25. Disponível aqui.

E o livro:

LA TAILLE, Yves de. Vergonha – A Ferida Moral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

******

Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, professora da Universidade Federal de Goiás