Por que não deixei a trava da porta aberta hoje? Somente hoje. Sei que fico louco quando isso acontece, mas por que não agora? E agora? Bem, agora, nada! Já foi! Ou melhor, já era… E a interface do aparelho? No estojo? Cadê o estojo? Será que havia mais alguma coisa aqui? Ih! Meus óculos… Documentos? Não. Nenhum importante. Que bagunça! É. Foi só o aparelho mesmo. Só? Só.
‘Arrombamento seguido de furto’. Pela lógica, o ‘esquema’ é um joelho na porta – na altura da maçaneta– e os dedos das duas mãos entre a porta e o teto. Todo mundo sabe disso. Natural. Normal. Real. Ah! Quase me esqueci: tem o ‘cara’ ou ‘a’ ‘cara’ –pode ser homem ou mulher (ou melhor, menino ou menina) – que, sutilmente, insere um dos braços pelo vão aberto em alavanca já descrita e (surpresa!) destrava a porta.
Diria meu pai: ‘Um homem prevenido vale por dois.’
Diria minha mãe: ‘Você teve sorte. Agradeça a Deus.’
Diria meu irmão: ‘Eu avisei, não avisei?’
Chega de sermão! A culpa é minha. Quer dizer, a responsabilidade é minha –a culpa é dos ‘caras’.
Uma ocorrência simples
Essas coisas só acontecem com os outros até que aconteçam comigo. E pela terceira vez. Não aprendi esta lição: carro deve ter, no mínimo, seguro e alarme; deve ser estacionado em local movimentado e iluminado e, definitivamente, não ser uma vitrine de objetos de valor.
Se sei tudo isso, por que não aplico? Tenho seguro obrigatório, como qualquer outro. Particular, não. Alarme, não. Não gosto. Nunca usei. O local, sim, era movimentado e iluminado. E a única coisa de valor era o objeto mais visado dos ‘caras’: um aparelho de CD.
Confesso que não fiquei nervoso, nem surpreso. Jornalista residente em Varginha que não sabe sobre a freqüência de histórias como essas…
Providência oficial: ligar para a Polícia (190 – todo mundo sabe). Orientação: comparecer ao posto central. Mas por que os policiais não podem comparecer no local? Evidente: não houve vítima, foi apenas um arrombamento seguido de furto. E se o veículo e condutor podem ir até a polícia, a polícia não precisa ir até o local. Foi uma ocorrência simples. Tem coisa muito pior acontecendo todos os dias.
‘Chovendo no molhado’
No intervalo de uma hora, já no posto policial, descobri que haviam duas outras ocorrências parecidas: uma na rua Rio de Janeiro, no Centro; outra, no bairro Fátima. Conclusões: os mesmos ‘caras’ fizeram esse itinerário ou Varginha tem vários ‘caras’?
Voltemos à culpa e responsabilidade. Eu assumi a minha parcela de responsabilidade. Mas preciso repartir com mais alguém. Bem, vamos repartir com os ‘caras’. Não sei quem são, nem quero saber. Não sei se são desempregados, se passam fome, se têm teto, se têm família. Não sei. Vamos todos assumir: a maioria de nós não sabe. Esse é o nosso comportamento. Quem tem emprego, alimentação, teto e família só vai se dar conta dos ‘caras’ quando acontece uma coisa dessas.
É preciso questionar, sempre, por que isso acontece. E toda a sociedade tem uma parcela de responsabilidade. A sociedade gera exclusão e a exclusão gera problemas dos mais diversos que afetam diretamente o conjunto da sociedade. Estou ‘chovendo no molhado’. Todos sabem disso. Ou, se não sabem, deveriam saber.
Sem recuperação
Quem acompanhou o caso João Hélio, menino morto no Rio de Janeiro após ser arrastado do lado de fora do carro preso pelo cinto de segurança, sabe do que estou falando. Quem leu o artigo ‘Razão e Sensibilidade’, do filósofo Renato Janine Ribeiro, publicado na Folha de S. Paulo, tem a dimensão do problema.
‘Como devem ser punidos?’, perguntou Janine. E, para ele, naquele caso a pena de morte era pouco. Deveria ser uma morte hedionda, com suplícios medievais, prolongar ao máximo o sofrimento e retardar a morte. O filósofo, em recaída, assustou a sociedade com contradições pessoais. ‘Todo o discurso que conheço, e que em larga medida sustento, sobre o Estado não dever se igualar ao criminoso, não dever matar pessoas, não dever impor sentenças cruéis nem tortura – tudo isso entra em xeque, para mim, diante do dado bruto que é o assassinato impiedoso.’ E foi além: ‘Torço para que, na cadeia, os assassinos recebam sua paga; torço para que a recebam de modo demorado e sofrido.’
Longe de mim desejar isso a qualquer pessoa. Não comparo os ‘caras’ aos nazistas, como fez Janine. Nem me atrevo a sugerir diferentes modos de impor a pena máxima. Concordo, sim, que a punição deve ser de acordo com a gravidade do crime e que, infelizmente, algumas pessoas parecem não ter recuperação.
Pobreza não é causa de violência
As causas são todas de responsabilidade minha, sua, da sociedade. E eis aqui uma questão polêmica levantada pelo filósofo e que considero da mais elevada importância neste momento, no Brasil e no mundo: se a responsabilidade é nossa, da sociedade, de dar condições, não apenas de cada ser humano sobreviver, mas de viver em sua plenitude, também seria de responsabilidade da sociedade, quando garantir essas tais condições, punir através do Estado com a pena de morte, prisão perpétua, redução da maioridade penal?
E reflete, novamente, Janine: ‘É-se humano somente por se nascer com certas características? Ou a humanidade se constrói, se conquista – e também se perde? Alguém tem direito, só por ser bípede implume, de fazer o que quiser sem perder direitos?’
O que nos resta é garantir perspectivas e futuro à sociedade como um todo, principalmente aos excluídos. Não defendo, aqui, uma sociedade igualitária, até porque não acredito nesse sistema socialista. Defendo, sim, uma sociedade mais justa. Vamos continuar divididos por classes, claro. Não há como fugir. É assim. E deve funcionar assim. Pobreza não é causa de violência, desonestidade, falta de humanidade. Miséria, sim.
Responsabilidade da exclusão
Talvez os ‘caras’ que me vitimaram sejam pobres, talvez não. Talvez eles sejam simples colecionadores de aparelhos de som automotivos. Quem sabe? Talvez estivessem nervosos com a derrota no jogo de futebol? Ou foram heróis ao retirarem o aparelho em chamas para impedir que o carro fosse incendiado. E se foram aqueles que odiavam o meu estilo musical? Todas essas questões devem ser consideradas.
Os ‘caras’ saciaram a sede e a fome, hoje. O que farão todos os dias. Repetidamente. Até que, enfim, caiam nas garras da Lei. Uma Justiça que, quando prova, penaliza mas não corrige. Freqüentemente deixa livre por falta de provas. Na prisão, todos são punidos, uns mais e outros menos. Alguns pelos próprios colegas.
Encerro esse desabafo satisfeito. Foi apenas um arrombamento seguido de furto. Normal. Natural. Real. Vítima pela terceira vez em uma década – é uma boa média. Nenhum ferimento. Apenas prejuízos financeiros leves.
O maior prejuízo é o moral, dos sentimentos. Sentimento de inércia, impunidade, descrença. Sentimento da necessidade de um esforço coletivo, repetitivo, assertivo, cada vez maior. Não existem dois lados: bem e mal. Existe a sociedade e os excluídos. E o sentimento também perpassa pela responsabilidade da exclusão.
Em Perfeição, o saudoso Renato Russo descreveu como age a nossa sociedade diante de tudo. ‘Vamos celebrar a estupidez humana / A estupidez de todas as nações / O meu país e sua corja de assassinos / Covardes, estupradores e ladrões / Vamos celebrar a estupidez do povo / Nossa polícia e televisão / Vamos celebrar nosso governo / E nosso estado que não é nação / Celebrar a juventude sem escolas / Crianças mortas / Celebrar nossa desunião.’
Eu assumo a minha responsabilidade. E você?
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Jornalista, Varginha, MG