‘Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso.’ (Bertolt Brecht)
Não precisa muito esforço para entender por que os grandes gestores da mídia brasileira (como concessionários, ou talvez beneficiários, de um serviço que se apresenta como público) tiveram uma reação tão agressiva ao modesto Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), em sua terceira edição.
Em qualquer regime ou modo de organização social, a defesa dos Direitos Humanos é condição preliminar ao livre exercício da cidadania e pode assegurar uma manifestação democrática dos diferentes modos de pensar, viver e agir da população. Oportuno lembrar que esta é a terceira versão do Programa. Em 1996 e 2002, o então governo FHC (demos e afins) tentou apresentar para a sociedade projetos semelhantes que encontraram resistências e pouca participação social. O detalhe é que nas duas situações anteriores os mesmos setores que agora atacam abertamente optaram por um ‘educado’ silêncio! Este, portanto, é o momento de os diferentes grupos sociais se manifestarem para que o Brasil, de uma vez por todas, tenha um projeto público capaz de garantir a gradual defesa e implantação de direitos fundamentais ao exercício da cidadania. E, portanto, da democracia!
Se alguns dos atuais concessionários dos meios de comunicação se sentem ameaçados em seus direitos, existe aí um problema, uma vez que tais concessionários tentam se legitimar pelo uso (ou seria abuso?) de um bem que é declaradamente prestação de serviço e, pois, de interesse público, que deve(ria) assegurar iguais condições de expressão aos mais diversos setores sociais.
O reconhecimento plural da sociedade civil
Se isso não acontece na prática, é função do Estado, através dos gestores (governos), criar mecanismos de garantias para o exercício dos direitos humanos de forma universal. Daí o conceito de que quando se fala em DH se fala em universalidade, sem favor ou privilégios. Alegar que um Programa em Defesa dos DH fere uma abstrata liberdade de expressão seria, pois, apelar pela manutenção de um privilégio que alguns proprietários privados da mídia tentam vender para manter as coisas como estão.
Daí, a pergunta: quem poderia ter medo da democratização da comunicação? Qual o problema em pensar formas de assegurar que os usuários da mídia – como já temos algumas garantias aos consumidores em geral, através do Código de Defesa do Consumidor – tenham mecanismos de cobrar que toda informação apresentada ao público deva ser de interesse coletivo e não beneficie apenas alguns poucos setores privilegiados? É por isso que o PNDH envolve o direito social à informação.
Buscar formas de garantir direitos sociais – seja educação, transporte público, saúde ou a garantia de que se pode andar pela rua sem ser preso e executado em algum porão da ditadura – é uma condição de existência e justificativa do Estado moderno. E, ainda, não está nem em pauta o que se entende por Estado contemporâneo! O contrário parece selvageria ou ilusão. Isso porque não há, nas sociedades contemporâneas, país onde a cidadania seja assegurada apenas pela hipotética relação de mercado. É preciso admitir, para além do papel do Estado, o reconhecimento plural da sociedade civil. E isso o mercado não faz!
Democracia, história e cidadania
O Brasil não pode mais conviver com exposições humilhantes de situações que afrontam a dignidade de seus cidadãos, deixando emissoras de rádio e TV, ou mesmo jornais, reféns de interesses eleitoreiros, financeiros e de outras vontades particulares. É preciso que o usuário tenha espaço real e possibilidade de se manifestar ao que muitas vezes é apresentado como a única voz dominante, de Norte a Sul do país, ignorando os variados modos de pensar, agir e viver da população. Cenas de violência, ataques a homossexuais, negação do direito feminino ao próprio corpo, dentre outras formas de preconceito, marcam o cotidiano da mídia brasileira, como se fossem normais.
A realização da 1ª Conferência Nacional da Comunicação, concretizada ao longo de 2009, confirmou o interesse de dezenas de milhares de pessoas que se envolveram diretamente nos debates e propostas que foram aprovados na busca de melhorar a produção e circulação de mídia, com iguais direitos de acesso e expressão. É daí a proposta de criar um órgão regulador para acompanhar o que e como se produz mídia, assegurando um controle social, por parte da população. Isso é direito à informação! E não se pode falar em Direitos Humanos sem a garantia de uma informação plural, democrática e capaz de expressar os diferentes modos de viver.
Outro tema polêmico, que merece atenção por parte da sociedade civil, é a busca da ‘verdade’ em relação às conhecidas práticas de tortura. Quem teria medo de uma Comissão de Verdade e Justiça? Possivelmente, apenas aqueles que foram responsáveis por prisões ilegais e abusivas, práticas de torturas ou execuções até hoje inexplicadas de pessoas que pagaram com a própria vida apenas por reivindicar o direito de pensar e se manifestar. O Brasil é, neste momento, um dos poucos países da América Latina que mantém uma dívida com a própria história por não permitir que a população saiba como, quando e em que condições muitos dos presos políticos morreram, sob que autorização e direito tais mortes foram impostas, em certos casos de jovens que sequer sabiam por que estavam sendo torturados. A proposta de criação da Comissão de Justiça e Verdade é mais que um desafio: um compromisso em defesa da democracia, história e da cidadania. Chega de se ‘esconder’ atrás do discurso de conciliação e do suposto anti-revanchismo histórico!
Um ‘festival’ de preconceitos
O Brasil é signatário de inúmeras convenções e pactos internacionais que tratam dos DHs, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José, 1969), Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Belém, 1994) e a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (Durban, 2001). No entanto, até o momento, mantém sob um tapete estranho a informação e a verdade sobre a forma e condições em que foram mortos inúmeros brasileiros durante o último regime ditatorial (1964-85). É hora de a sociedade reagir!
Por fim, é importante que as propostas apresentadas no atual Programa Nacional de Direitos Humanos sejam entendidas e defendidas como mecanismos para melhorar as condições da vida e o exercício de cidadania para a grande maioria da população. Até porque as propostas do PNDH não são de um único partido, grupo ou setor de governo (não é por acaso que a 3ª edição do Programa é bastante similar às duas versões anteriores, de 1996 e 2002), pois resultam de um acúmulo de debates apresentados pela sociedade civil, movimentos e entidades públicas, aprovados na XI Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em 2008.
É isso, apenas… Direitos Humanos é condição de cidadania e base para uma sociedade democrática! Participe e faça valer sua dignidade. O Brasil não pode mais esperar! Quem sabe os profissionais da mídia brasileira, em seus modestos limites de ação editorial, poderiam assumir o compromisso de ouvir e entender o que significa Direitos Humanos num país com tantas desigualdades!
E o que a mídia tem a ver com isso? Até o momento, o que se pode ouvir, ler e ver – ao menos em grande parte do que apresentado pelas grandes empresas do setor, com raras exceções – é uma espécie de ‘festival’ de preconceitos, em defesa de velhas versões oficiais, temerosas de qualquer proposta de mudança. É urgente, pois, ampliar um legítimo debate público em torno da terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos.
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Jornalista, professor, porta-voz do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) Comitê Ponta Grossa, PR